‘A língua dos bombardeios é universal’

Por Mariana Duccini

O jornalista Lourival Sant’Anna pôde ver de perto alguns dos mais importantes conflitos armados da contemporaneidade. Como repórter especial do Estado de S. Paulo, cobriu desde a precária recomposição social na África do Sul pós-apartheid até as ações guerrilheiras das FARC, as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia. Nos últimos anos, tem se dedicado a entender a motivação e os desdobramentos de diversas guerras no Oriente Médio. Esteve, por exemplo, no Afeganistão e no Iraque. Neste ano, foi enviado ao Líbano para contar, ao menos em parte, a história dos 34 dias de conflito entre Israel e o grupo xiita libanês Hezbollah, conforme relata nesta entrevista.

Lourival estava de férias, acampando com os dois filhos no interior de São Paulo, quando a guerra foi iniciada, em 12 de julho. A verve de repórter quase fez com que ele abandonasse o passeio na mesma hora. Mas uma única frase de seu caçula, empolgado com o programa, fez com que o jornalista mudasse de idéia: “Pai, hoje é o melhor dia da minha vida”. O Líbano teria de esperar.

De volta à redação, tudo foi decidido. Lourival iria àquele país para tocar a cobertura que o jornalista Eduardo Salgado, que hoje está na Revista Exame, iniciara. Baseado em Beirute, Lourival se deslocou até a região de Marjeyoun, no sul do Líbano, onde passou uma noite sob o bombardeio israelense. A seguir, a entrevista.

Sob as bombas
“Fui para o Líbano com a idéia de descrever para o leitor o que é um bombardeio. A assimetria era o aspecto mais interessante dessa guerra, do ponto de vista jornalístico. No domingo (06/08), eu fui para Zahle, capital do Estado do Vale do Bekaa, no meio do caminho para o sul. Conheci um sheik libanês-brasileiro, cujo genro iria no dia seguinte para Marjeyoun, a cidade mais castigada pelo bombardeio israelense. Fui para Zahle para um primeiro contato, para estudar minha ida para o sul. Seria uma incursão de um dia. Mas então conheci o sheik e, de lá, já fui para Marjeyoun, sem chance de voltar para o hotel (em Beirute). Fui com a roupa do corpo, o celular, meu bloco de anotações, meu gravador e minha câmera fotográfica. No dia seguinte à tarde, já estava lá. De segunda para terça, o  celular ainda funcionava, para minha surpresa. Liguei para o jornal. Ditei uma matéria que, na verdade, estava acontecendo naquele exato momento. O rapaz que estava digitando dizia: ‘Estou ouvindo as bombas’, porque nossa casa, que era contígua a uma mesquita, balançava. Eram 8h20 da noite. Foi aí que começou, para mim. Passei a noite toda sob esse bombardeio. No fim do dia seguinte, retornei de Marjeyoun”.

Mísseis na estrada
“A travessia da estrada que nos levou a Marjeyoun durava cerca de uma hora. Isso é muito tempo no Líbano, um país pequeno. Durante esse tempo, não víamos nenhuma pessoa, nenhum carro. As únicas coisas em movimento foram dois mísseis que caíram à nossa frente. O rapaz que decidiu ir para lá (genro do sheik libanês-brasileiro) fez isso porque tinha de levar pão para a cidade. E esse alimento não era só para os sunitas, como ele; era para todos. Quando a gente chegou, o lugar estava deserto. Aos poucos, as pessoas foram aparecendo, para buscar o pão”.

O apoio ao Hezbollah
“A adesão dos libaneses ao Hezbollah não foi algo imediato. Existem divisões confessionais, como eles dizem por lá. E o Hezbollah é um grupo xiita. Assim, os sunitas e cristãos, e mesmo alguns xiitas, não concordam com as ações desse grupo. Mas houve uma particularidade que foi o momento da guerra. O bombardeio israelense, de certa forma, amalgamou uma opinião libanesa, houve uma certa coesão em torno do Hezbollah como ‘aquele que está preservando nossa dignidade, que está nos defendendo’. Para os xiitas, especificamente, existe outro fator, que é a rede de assistência social que o Hezbollah representa. Com o fim da guerra, no entanto, acho que haverá maior cobrança de sunitas e cristãos sobre a co-responsabilidade (ao lado de Israel) desse grupo na destruição de um país que tinha acabado de se recompor”.

Mártires brasileiros
“Conheci lá uma família de brasileiros (na verdade, chefiada por mulheres), que é de Itapevi, no interior de São Paulo, e perdeu dois rapazes lutando pelo Hezbollah, no sul. Elas estavam muito orgulhosas da atitude deles. Essa questão do martírio se nutre basicamente de três fatores. Um é o ressentimento, a humilhação acumulada, que se transmite de geração a geração. O segundo é a noção de heroísmo. Finalmente, há o aspecto religioso. Eles têm certeza, assim como nós temos as nossas certezas, de que o mártir e seus parentes irão para o paraíso. Chega a ser lógico, embora continue sendo chocante”.

O olhar do intérprete
“E tinha um intérprete em Beirute que era cristão maronita, mas ele não ficou comigo durante todo o tempo, porque não queria correr grandes riscos. É claro que era impossível para ele se descolar dessa identidade, mas tendo conhecimento da história do país, você consegue perceber essas sutilezas (de pontos de vista específicos sobre o conflito). Além disso, ele era um homem muito honesto. Houve casos em que se recusou a ser o intérprete, quando achava que as discussões eram muito conceituais. Em Marjeyoun, havia um padre ortodoxo que falava inglês. Sempre que eu precisava, ele estava ao meu lado. Agora, a língua dos bombardeios é universal. Você se vira sozinho nesse ‘diálogo’ inesquecível com os pilotos israelenses”.

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