O maior erro de cálculo dos EUA

Wilfred Gadêlha

JORNAL DO COMMERCIO – Como você vê o momento atual dos Estados Unidos e sua política com relação à retirada das tropas de ocupação do Iraque?

LOURIVAL SANT’ANNA – A minha impressão é que este foi o maior erro de cálculo da história dos EUA. Eles achavam que seriam recebidos e apoiados pelo povo iraquiano por livrá-los do ditador Saddam Hussein. De fato, Saddam era odiado pela maioria dos iraquianos. O problema era quem colocar em seu lugar. Na época, eu conversei com intelectuais exilados na Jordânia, que não gostavam de Saddam. Eles diziam que o iraquiano não aceita um governante que não seja violento, que não seja brutal. Se ele não for assim, é uma demonstração de fraqueza, eles passam por cima do governante. A democracia é uma coisa impensável naquele estágio que estão vivendo, em todo o mundo árabe e muçulmano. Tem até uma capa da revista The Economist em que eles defendem a permanência das tropas. Mas o editorial fala o contrário: “A política, disse John Kenneth Galbraith, é a arte de escolher entre o desastroso e o intragável. O problema para a América no Iraque é que é agonizantemente difícil dizer qual é qual”. Os EUA deram uma oportunidade formidável para o Irã aumentar a sua influência na região. Isso se refletiu no Líbano e na Palestina – eu cobri, recentemente, a tomada da Faixa de Gaza pelo Hamas. Houve uma reconfiguração no Oriente Médio. A intenção dos EUA era ter um país com profundidade estratégica para estacionarem suas tropas, terem uma base militar sólida. Eles não puderam ficar na Arábia Saudita. Na primeira guerra contra o Iraque, a intenção era usar a Arábia Saudita como uma base, como pretexto da ocupação do Kuwait. O pai de Bush fez isso. Foi por isso que Osama bin Laden se voltou contra os EUA. Até então, ele era aliado dos americanos. Mas os EUA tiveram que sair, senão a monarquia saudita iria cair, porque lá é a terra sagrada do Islã e lá não pode haver soldados estrangeiros. Eles estavam em busca de um outro país. O Iraque parecia maduro para isso. Mas eles não levaram em conta duas coisas básicas. Primeiro, a rejeição à ocupação, o orgulho nacional…

JC – Esse orgulho era uma coisa natural ou foi incutido na cabeça dos iraquianos pelos anos de ditadura do Partido Baath?

SANT’ANNA – Eu acho que é um orgulho original, natural, que todo povo tem. Sérgio Vieira de Mello, antes de morrer, disse em uma entrevista ao Estadão: “Imaginem tanques americanos na Praia de Copacabana”. Os iraquianos são um povo com uma cultura milenar. Eles até aceitavam uma ocupação temporária, muito rápida, que fosse só a título de expulsar Saddam. Mas aí vem o segundo fator: o Iraque é um tripé, com três povos – curdos, sunitas e xiitas – que vivem muito mal entre si. Havia muitas contas a acertar. Começou então uma cadeia de vingança que não pára mais. Aí sim, com a entrada de grupos radicais, como a Al-Qaeda, transformaram o Iraque naquilo que Bush dizia que era, mas que não era. Foi Bush que, na verdade, fez com que o Iraque se transformasse em um berço do terrorismo internacional.

JC – Os EUA relutam em classificar a violência sectária no Iraque de guerra civil.

SANT’ANNA – É guerra civil. Tem todos os elementos para ser. Envolve uma grande quantidade de pessoas, mobiliza grupos muito grandes que estão se dedicando só à guerra e que paralisaram o país. Você não circula pelo Iraque. Isso foi ilustrado agora quando o presidente Bush esteve com o xeque Abdul Sattar Abu Risha, na província de Al-Anbar para celebrar uma maior segurança. Duas semanas depois, o homem foi morto.

JC – O que lhe impressionou mais no Iraque?

SANT’ANNA – Eu cheguei logo quando a estátua de Saddam caiu. Peguei aquele final da guerra e o início da insurgência. Os fedayin – guerreiros, em árabe – eram homens leais a Saddam Hussein. O Iraque era um depósito de armas. Saddam distribuiu fuzis AK-47 para a população. Ele imaginava que o povo iria defender o Iraque. Um erro tão grosseiro quanto o de Bush. Eu vi, no subsolo do prédio do Parlamento, sacos de fuzis, guardados, para que a supostamente a população os usasse como trincheira. Era uma sociedade armada até os dentes. Cada iraquiano tem direito a ter um fuzil. Isso foi herdado agora. Os americanos toleraram isso.

JC – E qual é a solução que você enxerga?

SANT’ANNA – Infelizmente, o Iraque precisa de uma guerra civil para separar as populações. Não há como curdos, xiitas e sunitas conviverem.

JC – Então, seria a formação de três Estados?

SANT’ANNA – Uma federação de regiões ou Estados muito autônomos. No fundo, eles estão brigando pelo petróleo. No norte, onde estão os curdos, há os campos importantes. No sul, onde estão os xiitas, também. Mas os sunitas vivem em uma região sem petróleo. Com essa consolidação da separação, os sunitas, que sempre dominaram, ficam pobres. Enquanto isso não for acertado, o Iraque vai viver uma guerra civil.

JC – O general David Petraeus disse na semana passada que os EUA estão muito ocupados no Iraque para entrar em guerra com o Irã. Mas a França sinalizou que vai pegar mais pesado contra os iranianos. O regime dos aiatolás é a bola da vez?

SANT’ANNA – A França está defendendo sanções maiores. Os Estados Unidos estão exauridos do ponto de vista militar. Não há a menor possibilidade de eles se engajarem em algo substancial no Irã, como uma queda de regime. Mas há vários planos de um ataque cirúrgico contra as 200 instalações nucleares iranianas. A própria dimensão e a natureza do programa nuclear iraniano já dificulta muito uma ação dessa. Eles se vacinaram contra isso, quando Israel bombardeou uma usina nuclear no Iraque, em 1981. Isso foi uma lição para não concentrar tudo numa só instalação. Estive no Irã há coisa de um ano e pouco. Eles estavam muito confiantes. Fizeram uma coisa muito espalhada, territorialmente, pelo país todo. Teria que se bombardear o Irã inteiro e não se conseguiria parar o programa. Poderia no máximo atrasar. Outra coisa é que eles se convenceram que a bomba nuclear é a chave para a sobrevivência deles. É um projeto nacional que uniu os iranianos. O país estava dividido. Há uma classe média que está cansada dessa teocracia, que não tem nada a ver com os valores dessa classe média baixa, que é até resultado da Revolução Islâmica de 1979. Mas os EUA estão tão desmoralizados do ponto de vista estratégico e militar que isso vai ficar para o próximo presidente americano.

JC – O terrorismo voltou com força no Paquistão e no Afeganistão – onde os EUA iniciaram a sua “guerra contra o terror”, em 2001. Esta guerra fracassou?

SANT’ANNA – A guerra contra o terror é uma contradição. A característica principal do terror é que ele não faz guerra, ele não atua de maneira convencional. Exércitos não resolvem o problema do terrorismo. Se resolve com inteligência. É mais com a Polícia Federal e Abin, FBI e CIA. Na segunda vez que estive no Afeganistão, em 2004, foi a convite do governo dos EUA, para que eles mostrassem como estavam entregando as promessas que fizeram ao ocupar o país. Eu percebi que era uma coisa muito pequena: algumas estradas, alguma infra-estrutura. Aquilo não conseguiria contrabalancear a capilaridade do Talibã. Não só os EUA, mas sobretudo a Otan, cometeram muitos erros. Houve uma ação em que morreram 200 civis, por erros deles. Eles têm poucos homens. Quando não se está suficientemente guarnecido em termos de homens, há o “overeact”, ou seja: a reação com violência excessiva. No Afeganistão, os EUA tinham tudo para ter mais sucesso. No início, havia uma grande aceitação da ocupação americana, porque o Talibã era mais odiado ainda pelos afegãos do que Saddam Hussein no Iraque. Havia o chamado elemento estrangeiro. A Al-Qaeda era uma coisa muito mal-assimilada pelos afegãos. É uma base árabe dentro do país, a ocupação de um xeque saudita. Por isso, o país está caminhando para um reagrupamento violentíssimo do Talibã e da Al-Qaeda.

JC – Há alguma luz no fim do túnel?

SANT’ANNA – A situação só tende a se agravar. Há um elemento importante, que é o Irã. O Hezbollah é um projeto seriíssimo dentro do Líbano. Eles estão se expadindo, adquirindo terras. É um Estado dentro do Estado, com o apoio do Irã e da Síria, que está inviabilizando a reconstrução política e econômica do sul do Líbano. A situação na Palestina está absolutamente intragável. Para quem imaginava que iria melhorar, piorou muito. Dois Estados onde não há nem um Estado oficial ainda. O Hamas tomou a Faixa de Gaza e está trabalhando.

JC – Hamas e Hezbollah se diferenciam da Al-Qaeda porque apresentam um trabalho social.

SANT’ANNA – Eles têm uma rede social muito sólida. Eles pertencem ao povo, eles são do povo. O Hamas é palestino e o Hezbollah é libanês. Eles têm a coisa do martírio. Ao contrário da Al-Qaeda, que ficava atacando os EUA e os afegãos não entendiam o que tinham a ver com os americanos. Já os libaneses entendem que Israel é o inimigo, os palestinos entendem que Israel é o inimigo. Isso vai só se agravar. O Hamas está trabalhando para ocupar a Cisjordânia. Esse muro de Israel só fortalece o Hamas. O Oriente Médio vai se complicar ainda muito nos próximos anos.

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