A crise venezuelana

Democracia dará lugar na Venezuela a sistema similar ao da antiga União Soviética

Danahis Vivas, mulher do policial Oscar Pérez, disse que o que o motivou a fazer o espetacular voo de helicóptero sobre Caracas na terça-feira pedindo a renúncia do presidente Nicolás Maduro e a convocação de eleições foi o desejo de “deixar seu legado e ser parte da história da Venezuela”.

Oscar Pérez, inspetor-chefe da divisão de apoio aéreo do CICPC (polícia científica do país) usou um helicóptero da corporação para sobrevoar as sedes do Executivo e do Judiciário em Caracas, exibindo uma faixa contra Maduro, o qual qualificou a ação como parte de um “ataque terrorista” | Caraota Digital/ Handout via Reuters

Certamente o piloto e ator de cinema assegurou seu lugar na história, ao sobrevoar a capital exibindo uma bandeira com os dizeres “Liberdade” e “350” – artigo da Constituição que prevê que “o povo desconhecerá o regime, legislação ou autoridade que contrarie os valores, princípios e garantias democráticos ou viole os direitos humanos”; além de gravar um vídeo convocando as forças de segurança a se erguer contra o governo.

Mas será preciso bem mais que isso para mudar o rumo da história. Aparentemente, o movimento não teve adesão. “Houve arrependidos”, queixou-se Danahis, que vive no México com seus três filhos e a mãe de Pérez. A família se mudou depois da tentativa de sequestro de um dos filhos do policial. E, duas semanas antes da ação, um irmão de Pérez foi assassinado a facadas por um ladrão de celular – o que apenas o torna um venezuelano comum, em um país mergulhado na violência e na escassez de alimentos e outros itens básicos.

A lealdade dos oficiais superiores das Forças Armadas é preservada com uma combinação de espionagem militar, com assistência de agentes de inteligência cubanos e a distribuição de negócios lucrativos, incluindo o comércio exterior, no qual as três taxas de câmbio oferecem grandes oportunidades de ganhos. Há relatos de insatisfações nas patentes intermediárias, mas Pérez não parece ter conseguido mobilizá-las.

Desde a derrota para a oposição na eleição de dezembro de 2015 para a Assembleia Nacional (AN), Maduro tem evitado eleições. Pelo calendário constitucional, deveriam ter sido realizadas eleições estaduais no fim do ano passado, e, neste ano, municipais. Além disso, o Conselho Nacional Eleitoral (CNE), controlado pelo chavismo, manobrou para evitar a realização de um referendo revogatório do mandato de Maduro, que termina no início de 2019.

Em vez disso, o presidente convocou por decreto a eleição, em 30 de julho, de uma Assembleia Constituinte, com o objetivo de criar um “Estado comunal”, para aprofundar o projeto de seu mentor e antecessor, Hugo Chávez (presidente de 1999 até sua morte, em 2013). A Constituinte terá 545 cadeiras, das quais metade será ocupada por representantes escolhidos pelas “comunas”, conselhos controlados pelo Partido Socialista Unido da Venezuela (PSUV), do governo. A democracia representativa dará, então, lugar a um sistema semelhante ao da antiga União Soviética e de Cuba.

Chávez criou as chamadas “Missões”, pelas quais agentes doutrinados por militantes do PSUV são remunerados para prestar serviços nas áreas de educação, saúde, assistência social etc. Há também uma milícia, hoje com quase 500 mil integrantes – que Maduro pretende ampliar para 1 milhão – para fazer o controle político e social da população. E os Comitês Locais de Abastecimento e Produção (Claps), que distribuem alimentos e outros bens essenciais seguindo o critério da lealdade ao regime.

A nova Constituição incorporará todo esse “Estado paralelo” como órgãos do Estado formal. É o que Maduro chama de “Estado comunal”, uma evolução do atual socialismo bolivariano.

É contra isso – além da escassez e do caos econômico – que, todos os dias, milhares de pessoas têm saído às ruas para protestar em toda a Venezuela. Do início de abril, quando o Tribunal Supremo de Justiça assumiu os poderes da AN – recuando três dias depois –, até agora, houve 81 mortes ligadas direta ou indiretamente aos protestos.

A situação me lembra o início da Primavera Árabe, quando os manifestantes ainda não tinham armas. Na Líbia e na Síria, os protestos, inicialmente pacíficos, degeneraram em guerra civil. Na Tunísia e no Egito, os presidentes renunciaram antes disso. O desfecho na Venezuela é profundamente incerto.

Publicado em O Estadão. Copyright: Grupo Estado. Todos os direitos reservados.

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