Só 7 anciãos ainda dominam a língua !nu

São 3 da tarde e !una Rooi, de 79 anos (seu prenome começa com um ponto de exclamação para indicar um fonema em estalo)

ANDRIESVALE, África do Sul – Está sentada numa cadeira sob o sol, no pátio da vila de bosquímanos, em Andriesvale. A equipe do Estado pede uma entrevista. !una dispara a falar misturando africâner e !nu, a língua que apenas ela e outros seis anciãos entendem, e que ela está ensinando a crianças bosquímanas. Por causa de seu som sincopado, os bosquímanos foram chamados pelos africâneres de hotentotes, que vem de “gagos” em holandês.

Os moradores da vila riem de sua franqueza: “Estou com fome. Não comi nada hoje. Só vou falar com vocês se me trouxerem comida.” Depois de outras visitas, a equipe volta à noite, com mantimentos comprados numa venda da vila. !una está se aquecendo ao lado de uma fogueira, dentro de uma cabana de palha, com mulheres mais jovens e crianças. Diante da promessa cumprida, aceita falar.

“Naquele tempo, vivíamos da natureza e não havia sofrimento”, começa !nu, falando de sua infância.Suas cabanas eram como as de hoje, de teto de palha de capim e paredes de madeira. Ela diz que havia muito mais árvores, e não só pequenas, como as da savana de hoje. Só havia alguns brancos, policiais. “Todo o resto eram bosquímanos.” O Kalahari Transfrontier Park, a reserva de safári binacional criada em 1933 que atravessa da África do Sul a Botsuana, ainda estava se formando. “Era tudo terra dos bosquímanos.”

Sobre a sua religião, !nu é sintética: “Acreditávamos na natureza.” Os bosquímanos faziam rituais de cura, ao redor do fogo. Os homens dançavam. As mulheres cantavam e batiam palmas. Os doentes ficavam deitados ao redor. Os anciãos punham o nariz e a boca no lugar que doía, sugavam o sangue e cuspiam no bosque. “Mas quem curava eram os homens pequenos do campo”, explica !una, indicando com a mão a altura desses personagens: em torno de 1,2 metro. “Nós não podíamos vê-los, mas sentíamos sua presença no bosque, ao nosso redor.”

Era proibido sair caminhando nas noites de rituais, para não ver os pigmeus. Uma vez, uma moça desobedeceu e foi até uma das dunas de areia vermelha do deserto. Um pigmeu jogou um veneno no olho dela. Foi salva da cegueira por um ritual de cura.

Os bosquímanos faziam também a dança da chuva – e chovia mesmo, garante !una. Em 1936, um inglês chamado Donald Baines passou com um caminhão e levou um grupo de bosquímanos, incluindo !una, então com 5 anos, para fazer apresentações de dança da chuva em Johannesburgo, Cidade do Cabo e Durban. Ficaram de três a quatro meses fora. Quando voltaram, os mulatos, descendentes de negras com holandeses, chamados de “bastardos”, tinham queimado as casas dos bosquímanos. Eles se espalharam. !una e sua família foram morar primeiro numa caverna, depois numa fazenda de brancos que lhes deram comida, a 10 km de Andriesvale. “Ficamos muito tempo nessa fazenda, e depois nos mudamos para outra, a 60 km de distância.” Foi então que !una e seus parentes aprenderam africâner. Começava a história de assimilação dos bosquímanos da região.

À pergunta sobre quem causava mais problemas para eles – brancos, negros ou bastardos -, !una responde: “Os bastardos e os bôeres (descendentes e holandeses). Não havia negros naquela época.” 

Publicado em O Estadão. Copyright: Grupo Estado. Todos os direitos reservados.

Deixe o seu comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

*