Disputa entre rei Fahd e Kadafi está por trás do conflito no Mali

Separatistas tuaregues foram armados pelo ditador líbio

BAMAKO – A Ponte Rei Fahd, sobre o Rio Níger, é a principal de Bamako. A vista ao longo de seus 800 metros é dominada pela Cidade Administrativa, imenso complexo de edifícios que abrigam a burocracia do Estado maliense. A ponte, como o nome sugere, foi construída por ordem do monarca da Arábia Saudita. O complexo de edifícios, pelo ex-ditador da Líbia Muamar Kadafi. Essas duas imponentes construções simbolizam o que está por trás do atual conflito no Mali: a disputa entre a Arábia Saudita do rei Fahd e a Líbia do coronel Kadafi pela influência sobre os países muçulmanos da África Subsaariana.

Kadafi, que gostava de ser chamado de “o rei da África”, comprava com ajuda econômica o apoio dos países situados ao sul da Líbia, ao mesmo tempo em que armava grupos potencialmente rebeldes desses mesmos países, como forma de manter os seus regimes como seus reféns. O ditador líbio, de cuja mãe se diz que era de origem tuaregue, armou fortemente um grupo de tuaregues, nas montanhas do Ghat, no sudeste da Líbia, fronteira com a Argélia.

Os tuaregues dominam historicamente as vastas planícies do Sahel, a faixa intermediária entre o Deserto do Saara e a savana, onde suas caravanas traficam ouro, sal, remédios, cigarros, armas, cocaína e pessoas. Ao comprar seu apoio, Kadafi garantiu a estabilidade de sua fronteira sul. A morte de Kadafi, em outubro de 2011, selou o fim desse pacto. No mesmo mês, a milícia tuaregue criou o Movimento Nacional de Libertação do Azawad, o nome que os separatistas dão às três províncias do norte do Mali. Deslocaram-se para a região, e a começaram a ocupar no início do ano passado.

Esse grande vazio, equivalente a duas Franças, e a dois terços do território do Mali, era visado também pela Al-Qaeda do Magreb Islâmico (AQMI), que há anos vislumbra a possibilidade de criar ali um santuário jihadista como o do Afeganistão, com a vantagem de estar situado muito mais próximo da Europa. Em março, com o objetivo de criar uma aliança tática com o MNLA, os radicais islâmicos criaram o Ansar Dine (Defensores da Fé), sob a liderança do tuaregue maliense Iyad ag Ghali, e composto por negros de diversas etnias, árabes e tuaregues.

Entre 2008 e 2010, Ghali foi cônsul do Mali em Jeddah, o centro de profusão da seita radical wahabita, a doutrina oficial na Arábia Saudita. Ele chegou a Jeddah profundamente religioso, e saiu professando o salafismo. No Mali, assim como em muitos outros países muçulmanos, o governo saudita sustenta escolas corânicas e mesquitas que ensinam essa leitura radical do Islã – a mesma aprendida pelos taleban (“estudantes”, em árabe) na fronteira entre o Paquistão e o Afeganistão. É nelas que grupos salafistas como o Ansar Dine e o Movimento para a Unidade e Jihad na África Ocidental (Mujao), uma dissidência da AQMI, recrutam seus militantes.

Em Bamako, fontes ouvidas pelo Estado especulam que o Ansar Dine, que abriga células da AQMI, seja financiado pela Arábia Saudita e pelo Catar, que têm tido um papel visível no apoio a grupos radicais combatentes na Líbia e na Síria. Essa vinculação é difícil de verificar. Mas a orientação wahabita desses grupos, e a propagação dessa doutrina pela Arábia Saudita como forma de firmar sua influência pelo mundo muçulmano em geral e pelo Sahel em particular parece evidente.

Publicado em O Estadão. Copyright: Grupo Estado. Todos os direitos reservados.

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