Crise abala grandes mitos cubanos

Para atrair divisas, governo exporta professores e médicos e os substitui por despreparados jovens ‘emergentes’

HAVANA – Em todas as discussões sobre Cuba, um argumento central dos que defendem o regime é o de que os sistemas públicos de educação e de saúde são bons, e para todos. Com ele, muitas vezes, pretende-se desculpar até os pecadilhos da ditadura, como os fuzilamentos de opositores e a falta de eleições e de imprensa livres. Trata-se de dois mitos, longamente cultivados, e cada vez menos verdadeiros.

Os indicadores sociais cubanos não são ruins. Compare com os do Brasil. Ao nascer, um cubano tem expectativa de vida de 77 anos; um brasileiro, de 71. Apenas 6 cubanos de cada mil nascidos vivos morrem antes de completar um ano; no Brasil, são 32. Na zona urbana, 99% dos cubanos têm acesso a alguma infra-estrutura de saneamento básico; e 83% dos brasileiros. O analfabetismo entre os cubanos com 15 anos ou mais é traço: 0,2%; e exorbitantes 13% no Brasil.

Os dados, de 2004, são da Oficina Nacional de Estadísticas (ONE), o IBGE cubano. Não há partidos de oposição, organizações não-governamentais, especialistas ou repórteres independentes para refutá-los. Entretanto, é visível o acesso dos cubanos a serviços sociais básicos, ainda que simples e precários. Digamos que os dados estejam corretos.

Antes da queda do ditador Fulgencio Batista, em janeiro de 1959, Cuba já tinha indicadores sociais – e também um padrão de vida – bastante razoáveis para um país latino-americano. Segundo as séries históricas do Fundo das Nações Unidas para a Infância e a Adolescência (Unicef), Cuba detinha, em 1960 – e indicadores assim não se fazem da noite para o dia, não podendo ser atribuídos à Revolução do ano anterior -, a segunda maior expectativa de vida da América Latina, com 64 anos. Perdia apenas para o Uruguai, com 68. A do Brasil era 55.

Sua mortalidade infantil era a mais baixa da região: 39 por mil. No Brasil, morriam 115 bebês por mil. Cuba sob Batista tinha as funções de cassino, balneário e zona franca dos Estados Unidos. Essas coisas feriam o brio nacional cubano, mas também geravam empregos e prosperidade. A Revolução se assentou sobre uma invejável base sócio-econômica.

Hoje, a educação e saúde cubanas parecem ingressar num acelerado processo de deterioração. Muitos entre os melhores professores, médicos e dentistas abandonaram o trabalho e até o país, afugentados por salários ridículos. Depois de um aumento no ano passado, os professores recebem 300 pesos (US$ 12,50) e os médicos, 576 (US$ 24,00).

Para aumentar o poder real de compra de seus mais de 5 milhões de funcionários públicos e aposentados (numa população de 11 milhões), Cuba precisa desesperadamente gerar renda e atrair divisas.

Metade das ineficientes usinas de cana-de-açúcar – tradicional base da economia, ao lado da mineração – foi fechada. Cuba é um desastre como exportadora de produtos. No ano passado, segundo a ONE, o país exportou US$ 1,997 bilhão e importou US$ 7,528 bilhões. O déficit comercial é parcialmente coberto com as remessas de cubano-americanos a seus familiares e com a venda de serviços.

Fidel precisa de mais dólares. Ele decidiu colocar todas as suas fichas na vocação cubana para os serviços, comprovada em uma década de abertura para hotéis de cadeias internacionais e investimentos nos hotéis estatais, além de restaurantes e outras modalidades de atendimento a turistas, tanto do governo quanto de pequenos empreendedores cubanos. Mas isso não é suficiente.

Valendo-se de sua boa imagem exterior nas áreas de saúde e de educação, Cuba passou a apostar nesses nichos, convertendo-os em ramos de seu turismo e em itens de exportação. Dezenas de milhares de médicos, dentistas e professores foram exportados para a Venezuela, Bolívia e outros países, em convênios pelos quais Cuba recebe em dinheiro ou produtos como o petróleo (leia mais em: País já tem hotéis para pacientes estrangeiros).

Com isso, agravou-se a escassez desses profissionais. Mas Fidel tinha um plano. Há um ano, depois de rápido treinamento, o governo colocou na praça milhares de professores, enfermeiros e paramédicos “emergentes” – jovens que tinham concluído o ensino médio e não tinham o que fazer. A idéia não agradou. Muitos cubanos se queixam da sua falta de experiência e preparo.

“Não estou de acordo com os professores e enfermeiros emergentes”, disse ao Estado uma funcionária do governo de 36 anos, formada em química. “Eles não têm vocação nem experiência. São gente que não estudou.” Ela conta que passou mal um dia e foi atendida num hospital por um enfermeiro emergente, que veio lhe aplicar uma injeção e obviamente não sabia o que estava fazendo. “Não deixei”, diz ela.

Há os que defendem o governo. “O ensino e a saúde vieram melhorando constantemente desde a Revolução”, garante o engenheiro de uma construtora estatal. “Disso não reclamamos. Temos policlínicas, hospitais, centros de referência, o que necessitamos. Quem sai da universidade sai bem formado. Um engenheiro cubano pode competir com o de qualquer país. As pessoas sempre vão se queixar quando encontrarem um professor ou médico inexperiente. É natural”, diz ele. “Se você puder escolher para seu filho entre uma professora de 60 anos e alguém que tem quase a idade dele, vai escolher a de 60. Mas os de 60 também começaram jovens.”

O Estado conversou com um grupo de oito professores emergentes de uma escola no bairro de Miramar, na mesma rua onde viveu o líder revolucionário Ernesto Che Guevara. Na faixa dos 19 aos 25 anos, todos concluíram o ensino médio (12.ª série) e fizeram curso intensivo de pedagogia de um ano. Têm turmas até da 9.ª série.

Além de despreparados, assumiram novas responsabilidades. Na mesma “Revolução da Educação” em que introduziu os emergentes, o governo também eliminou as especialidades. Agora, em vez de dar aula de uma disciplina em várias turmas, cada professor ensina todas as disciplinas – com exceção de inglês e de educação física – para uma mesma turma. A mudança se aplicou tanto aos professores veteranos quanto aos emergentes, e engloba até a 9.ª série.

A intenção óbvia é fazer o trabalho de cada professor render mais. Quando os professores só dão aula de uma disciplina – como ocorre no mundo todo, sobretudo a partir da 5.ª série -, muitas vezes não preenchem toda a carga horária, o que demanda mais professores do que se cada um cuidar de uma turma. E o turno nas escolas cubanas é integral: das 7h30 às 16h30.

Claro que Fidel tinha um discurso para justificar a mudança: ele disse que assim os professores conheceriam melhor cada aluno. “Agora, podemos trabalhar mais com os adolescentes”, diz uma veterana professora de história, que ficou com uma turma de 7.ª série numa escola do bairro de Playa, e pela primeira vez na vida tem de dar aulas de matemática, química, biologia, espanhol, etc. “Talvez não haja um aprofundamento tão grande”, admite. Mas conta que são exibidos em sala de aula vídeos gravados por especialistas. “Os alunos se preparam muito bem”, garante.

“São os contrastes da Revolução”, comenta um ex-oficial do Exército. “Antes, todo mundo tinha que ser superlicenciado. Agora, não. Disseram que era para revolucionar a educação. Todo revés, Fidel transforma em vitória.”

Não faltam “contrastes” na ilha de Fidel. O presidente decretou que a informática é prioridade na formação dos jovens. Até converteu a antiga base soviética de San Antonio de los Baños numa faculdade de informática. Mas é proibido ter computador e internet em casa.

Publicado em O Estadão. Copyright: Grupo Estado. Todos os direitos reservados.

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