Economia cresce, mas a vida é difícil

Serviços assumem o lugar do açúcar e atraem dólares, mas os cubanos têm de batalhar pela sobrevivência

SANTIAGO DE CUBA – A placa desbotada na entrada da Central Salvador Rosales transporta o visitante a um passado glorioso, quando os cortadores de cana de Santiago de Cuba, o “berço da Revolução”, seguiram Fidel e Raúl Castro nas florestas da Sierra Maestra: “Unidad y Victoria. Viva el 1º de Mayo.” Atrás dela, imensos galpões guardam o que restou da antiga usina de açúcar, desativada há dois anos e saqueada pelos mais de cem operários dispensados, que venderam o que puderam como sucata.

Das oito usinas de cana na Província de Santiago, apenas três seguem funcionando. A desativação em massa se seguiu a um discurso do presidente Fidel Castro, no qual ele anunciou que os baixos preços internacionais do açúcar já não justificavam a atividade que fora a base da economia cubana – sem admitir que o principal problema era a obsolescência e a ineficiência das usinas.

Ao fechá-las, Fidel já havia reorientado a economia para os serviços. Sob o manto da “solidariedade internacional”, Cuba tem arrecadado milhões de dólares atraindo pacientes para tratar de cataratas e outras doenças – na chamada Operação Milagre, um convênio firmado primeiro com a Venezuela de Hugo Chávez, depois com a Bolívia de Evo Morales. A operação é tão exitosa que vários hotéis em Havana estão sendo convertidos em hospitais para estrangeiros.

O governo cubano tem também aproveitado sua reputação nas áreas de saúde, ensino e esportes para “exportar” médicos, instrutores de alfabetização de adultos e professores de educação física e de balé para esses dois países “amigos” e outros da América Latina e até da Europa. Como em todos os setores, os profissionais são obrigatoriamente contratados por agências estatais. O governo embolsa os dólares e lhes paga o valor nominal em pesos, que valem 23 vezes menos.

Fidel ainda valorizou em 2005 a moeda conversível (CUC) – aceita nas lojas estatais que realmente têm o que vender, e no mercado negro – em 20% frente ao dólar, aumentando suas divisas com uma canetada. Com esses ganhos, Fidel aumentou há um ano os salários – em pesos – de todos os trabalhadores. Funcionários com diploma superior passaram de 198 a 305 pesos; os de limpeza, de 100 a 285 pesos. A economia cresce, não de forma abrupta, mas sensível, testemunha o mexicano Ovidio González, professor de economia do desenvolvimento na Universidade de Havana.

Teoricamente, Cuba é uma sociedade de pleno emprego. Todo cidadão que já cursou o ensino médio, obrigatório, tem direito a uma colocação. Os 444 operários dispensados das cinco usinas de cana da província de Santiago continuam recebendo seus salários, de 350 a 500 pesos, enquanto freqüentam cursos de recapacitação para novos empregos, por exemplo nos oito silos de milho importados do Brasil, que se estão instalando na província.

Yasmán Hernández, de 16 anos, no último ano de metalurgia no Centro Politécnico Vladimir Ilich Lenin, já sabe onde vai trabalhar quando se formar: na TRD, uma oficina de carros Lada e Moscovi e de tanques do Exército, igualmente obsoletos e de fabricação russa. Só não sabe quanto vai ganhar. E aqui é que está o problema. Um professor ganha 300 pesos; um médico, um dos profissionais mais bem remunerados, 575. E com isso não se faz praticamente nada.

Toda família cubana tem uma caderneta, com uma cota do que pode comprar mensalmente nas “bodegas”, as lojas estatais que aceitam pesos. Cada pessoa tem direito a 3,5 quilos de arroz, por 3,05 pesos; a 2,5 quilos de açúcar, por 0,65 peso; a 2 quilos de café, por 20 pesos; a um sabonete, por 0,25 peso; a 500 gramas de chocolate em pó, por 20 pesos. E uma “bola de pão” (no formato de hambúrguer, mas menor) por pessoa por dia, leite para crianças de até 7 anos, e frango ou peixe uma vez por mês. Uma família gasta cerca de 50 pesos por mês nas bodegas, e a maioria dos produtos da caderneta dá para 10 a 15 dias.

O restante para completar o mês, assim como carne, manteiga, iogurte, queijo, verduras, produtos de higiene e limpeza, roupas, sapatos, etc., tem de ser comprado nas “tiendas de divisas”, onde só se aceita “moeda dura”, ou seja, pesos conversíveis, e onde os preços equivalem aos do Brasil.

Nos setores em que se transaciona com pesos conversíveis, como turismo e comércio exterior, os funcionários recebem “estímulos” em CUCs, “para não roubar demais”, segundo os céticos.

Mas ainda assim é pouco. Uma promotora de vendas do Fundo Cubano de Bens Culturais, que comercializa obras artísticas, tem um salário de 305 pesos mais 10 CUCs, quando supera as metas. Seu marido, também funcionário público, ganha o mesmo.

Ela diz que só consegue chegar ao fim do mês porque sua mãe lhe manda dinheiro e presentes dos Estados Unidos. Um tênis “bom” para seu filho de 15 anos custa 50 CUCs. Fraldas, só de pano, “como no tempo colonial”, diz ela.

Os guardas de museus e galerias de arte de Havana costumam vender, por 1 CUC, o refrigerante e sanduíche de presunto e queijo que o governo lhes distribui de lanche, preferindo ficar com fome para ter algum dinheiro.

Em La Regla, antigo bairro de estivadores tornados contrabandistas, o pai de um motorista de caminhão vende o litro do óleo de cozinha que seu filho rouba do tanque por 40 pesos, quando o preço nos supermercados é de 2,15 CUCs (que equivalem a 49,45 pesos). No centro de Havana, os turistas são praticamente arrastados da porta das lojas de charutos, por homens que vendem, nos cortiços vizinhos, uma caixa de Cohiba de 300 CUCs por 120.

Exibindo seus crachás, um trio contou ao Estado que dois deles trabalham numa fábrica de charutos e colocam as caixas roubadas na mochila do terceiro, que trabalha como fumigador contra o mosquito da dengue. “Ganhamos 176 pesos mensais mais 30 CUCs a cada três meses, se não faltarmos nem um dia”, contaram eles. “Não dá para viver com isso.”

O sistema gera enormes distorções, como taxistas e garçons de locais turísticos, que lidam com pesos conversíveis, ganhando mais que engenheiros. “Nos meus 50 anos de vida, só tive 12 de conforto”, contabiliza um engenheiro que repara fábricas de charutos – três anos antes da Revolução, quando seu pai era gerente na mina de cobre de um americano, e entre 1980 e 89, período de boom econômico, em parte financiado pelo narcotráfico, culminando no fuzilamento de autoridades próximas a Fidel.

“Sou o número 2 da minha empresa”, diz o engenheiro, que recebe 385 pesos mais 15 CUCs de estímulo, nos meses produtivos, e vive numa casa modesta emprestada pelo irmão, no bairro pobre de La Regla. “Só queria ter uma casa confortável, comer bem, pôr uma camisa decente todos os dias.”

Publicado em O Estadão. Copyright: Grupo Estado. Todos os direitos reservados.

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