Futuro sem Fidel divide cubanos

Alguns sonham com a liberdade e os EUA, enquanto outros estão tristes com afastamento do líder e temem mudanças

GUANTÁNAMO – Nas estradas cubanas, não costuma haver muitas placas de sinalização. O motorista sabe que está chegando a uma cidade quando os outdoors com mensagens revolucionárias se multiplicam. Há as antigas: “Enquanto houver um patriota, estará combatendo.” As novas: “Unidos a Fidel e a Raúl, mais Revolução.” As internacionais: “Cuba e Venezuela, juntas na mesma trincheira.” E as locais: “Guantánamo, terra de gente mambise”, como se chamam os cortadores de cana do leste da ilha, que se uniram à luta da independência e, um século e meio depois, à Revolução.

No caso de Guantánamo, cidade de 400 mil habitantes, há outro sinal particular de aproximação. O da rádio FM 103,10, “the brightest rock’n’roll in the Bay” (“o rock mais vibrante da Baía”). O contato com o “imperialismo” não é apenas sonoro. Por 5 pesos cubanos conversíveis (US$ 6,25), o estrangeiro pode percorrer os 40 quilômetros do Hotel Guantánamo até o “mirador”, e ficar ali espiando os militares americanos, suas mulheres, filhos, empregados civis, carros, casas, edifícios, enfim, sua vida insular na base naval. Cubano só pode ir em visitas organizadas pelo governo, para ter certeza de que vai olhar aquilo do ângulo certo – “nossos inimigos” – e resistir à eventual tentação de pular os muros que separam os dois mundos.

“É claro que todo cubano quer ir para os Estados Unidos”, generaliza Ken, um negro alto de 42 anos, professor de inglês numa escola pública (como todas em Cuba, com exceção de um colégio vinculado à Embaixada da Grã-Bretanha em Havana). “Eu sei o que é a América. Todo mundo sabe que lá está o que há de melhor.” Ao abrigo do idioma inglês, o professor prosseguiu, sem ser entendido por seus amigos, num banco da praça principal de Guantánamo: “Fidel (Castro) é louco. Depois que ele se for, será melhor. Queremos ser livres.”

A opinião de Ken, que como todos os entrevistados nesta reportagem não sabia que estava falando a um jornalista, está longe de ser unânime. Muitos cubanos, mesmo não gostando do regime, demonstram apreço por Fidel, um sentimento que a doença do presidente cubano parece ter amplificado.

“Até os que se dizem contra-revolucionários puseram um copo d’água debaixo da cama, para seu santo proteger Fidel”, sorri Aníbal Melo, da filial cubana da Federação Sindical Mundial. “Você precisava ver a tristeza das pessoas”, disse ele, referindo-se ao dia 31 de julho, quando Fidel transferiu suas funções a seu irmão Raúl, admitindo que a obstrução intestinal que o acometera era severa demais para que as continuasse exercendo. “Mesmo não havendo ordem para isso, os que tinham festas programadas, cancelaram.”

“Sem Fidel, Cuba não é nada”, resume Carlos, um taxista que tem dois filhos vivendo em Tampa (EUA). “Fidel é um pão”, diz ele, o que na gíria significa alguém suave e doce. “Por ele, permitiria tudo, abriria tudo. Maus são os que estão debaixo dele que lhe tampam a visão, não o deixam ver os problemas, e são os que roubam.”

“Mesmo quem não gosta da Revolução é fidelista”, confirma um ex-capitão, que deixou o Exército por discordar do regime e sobrevive buscando oportunidades de negócios no próspero mercado negro de Havana. “Quando veio a notícia da doença, as pessoas sentiram muito medo das incertezas, da mudança.”

A continuidade do regime está supostamente assegurada, com a transferência do comando para Raúl Castro, ministro da Defesa e número 2 do regime – isso se o seu irmão Fidel, que apesar dos 80 anos vem se recuperando a olhos vistos, não voltar a exercer suas funções dentro de alguns meses, como se cogita em Havana. Mas Raúl tem 76 anos. O arranjo é obviamente temporário.

Mesmo sob Raúl, contudo, a transição pode não ser suave. No interior do regime, comandantes da velha guarda nutrem ressentimentos contra o irmão de Fidel, que no fim dos anos 80 aproveitou um expurgo na cúpula motivado por um escândalo de tráfico de drogas e estendeu sua influência sobre o temido Ministério do Interior, que cuida da segurança interna. “Quando Fidel for embora e Raúl assumir, vai começar a ‘jodería’”, diz um observador em Havana, usando um termo um pouco chulo que se poderia traduzir por “encheção de saco”.

“A continuidade da Revolução está assegurada”, desmente Ramiro Valenciano, um funcionário do Ministério da Educação que cuida de recapacitação de operários na província de Santiago de Cuba, no leste da ilha. “O poder será distribuído na nova geração, que tem excelentes quadros. Claro que alguém como Fidel só surge uma vez a cada mil anos.” Esse parece ser o temor – ou a esperança – de muitos cubanos, gostem ou não do regime.

Publicado em O Estadão. Copyright: Grupo Estado. Todos os direitos reservados.

Deixe o seu comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

*