Brasileiros voltam a favela para impedir retorno de milicianos

Operação de distribuição de alimentos mostra a presença da ONU em Cité Soleil, antes dominada por gangues

PORTO PRÍNCIPE – Cerca de 50 soldados brasileiros assumiram ontem o controle de uma área em Cité Soleil, reduto dos milicianos que voltaram a disputar território na favela depois de escapar da prisão, destruída pelo terremoto do dia 12. Ostensivamente, a operação foi montada para distribuir 400 caixas de biscoitos reforçados e 800 garrafas de 1,5 litro de água mineral. Mas serviu para mostrar a presença das tropas a serviço da ONU na favela de 300 mil habitantes, que era dominada pelas milícias até 2006, quando o Exército tomou o seu controle.

Os milicianos de Cité Soleil foram mortos ou presos nas operações das tropas brasileiras, cujas marcas de balas estão até hoje nos muros da favela. Depois da destruição da Penitenciária Nacional, e da fuga de 4 mil presos, os milicianos reapareceram. “A população tem medo de voltar à situação anterior, que era catastrófica”, disse Ricot Magene, de 30 anos, relações públicas da Grevha, uma associação de moradores da favela. “Vivíamos em condições desumanas. Os bandidos saqueavam, violavam, extorquiam e sequestravam.”

Alguns milicianos eram ex-militares e tinham armas do antigo Exército haitiano, dissolvido em 1994.

Depois da queda de Jean-Bertrand Aristide, em 2004, as milícias tentaram assumir uma conotação política, declarando-se a favor do ex-presidente. A Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti (Minustah), criada em 2004, considerava Cité Soleil uma zona proibida, até que o comando brasileiro decidiu ocupá-la, obtendo seu controle em 2006. Acredita-se que parte das armas ficou enterrada, e pode ser recuperada pelos milicianos.

“Acredito que a Minustah e a polícia haitiana conseguirão prendê-los de novo, mas devem ter muita prudência, para que a população não seja vítima”, pediu Magene. De acordo com o capitão Marcelo Domingues, comandante de uma das bases na favela, o Exército conta com a cooperação dos moradores, que passam informações sobre os bandidos. Depois da fuga da prisão, alguns moradores se armaram de pedaços de pau e facões e formaram “brigadas” para enfrentar os milicianos. Eles ajudaram a evitar a invasão da delegacia de polícia da favela por um miliciano, que pretendia matar o delegado.

O terremoto destruiu uma das bases do Exército na favela, matando dez militares e deixando outros seis feridos. Os militares se transferiram para a base comandada pelo capitão Domingues. Com capacidade para um pelotão, ela abriga agora quatro. “A presença das nossas bases aqui é muito importante”, disse o capitão. “A população sabe que não vamos sair daqui. O bandido tem medo.”

A operação transcorreu sem incidentes. Armados com fuzis-metralhadoras, soldados do 28º Batalhão da Infantaria, sediado em Campinas, que mantêm a base na favela, assumiram posições na área em torno da escola Dewine Becky, onde seria distribuída a ajuda. Depois de assegurada a área, dois caminhões com os mantimentos aproximaram-se, causando uma correria na favela. Em poucos minutos, formou-se uma fila de 2 mil pessoas: jovens, adultos, velhos e até crianças se espremiam, formando um cordão compacto.

“Só assim conseguimos alguma coisa”, disse uma mulher em creole, a língua nativa derivada do francês, enquanto entrava na escola, passando pelo portão fortemente guardado. “Só os americanos nos ajudam.” Déstin Vil-Frantzcéus, um cantor de rap de 20 anos que mora na favela, explicou: “Eles pensam que todos vocês são americanos.” Por causa de uma distribuição de chocolates por americanos, ocorridas anos atrás, as crianças da favela abordam assim os brancos para pedir comida: “Hey, you, chocolate.”

Dentro do pátio da escola, os moradores passavam por um caminhão, recebiam uma garrafa de água em cada mão, e seguiam para o segundo, onde colocavam a caixa de 8,5 quilos na cabeça. Os militares vigiavam a fila, impedindo aglomerações. Mesmo quando o funcionário haitiano do Exército avisou em creole por um megafone que a comida tinha acabado não houve distúrbios.

Na noite de segunda-feira, a operação de distribuição de ajuda foi menos tranqüila. Nove militares em um jipe e um caminhão saíram distribuindo caixas com enlatados, biscoitos fortificados, leite e água, para as famílias que perderam suas casas e dormem ao relento, no bairro de Bel Air, no centro de Porto Príncipe. Os militares tiveram de usar gás de pimenta para dispersar uma multidão, que avançou sobre o caminhão.

Publicado em O Estadão. Copyright: Grupo Estado. Todos os direitos reservados.

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