‘Catástrofe faz Haiti voltar 15 anos no tempo’

Para representante da OEA no Haiti, terremoto faz com que avanços obtidos venham ‘por água abaixo’

Ricardo Seitenfus chegou do Haiti na quinta-feira para passar férias em sua cidade natal, Arroio do Tigre (RS). As férias, provavelmente, salvaram a vida do representante especial no Haiti do secretário-geral da Organização dos Estados Americanos (OEA), José Miguel Insulza. O prédio da ONU, onde ele trabalhava, desabou. Seus dois colegas, o tunisiano Hedi Annabi, chefe da missão da ONU, e seu vice-representante especial, o brasileiro Luiz Carlos da Costa, morreram.

Seitenfus se preparava para embarcar ontem de volta para Porto Príncipe, num avião da Força Aérea Brasileira. Além de assumir os trabalhos da OEA e da ONU, terá a triste tarefa de descobrir o que aconteceu com os mais de cem funcionários das Nações Unidas no Haiti.

Antes de embarcar no avião da FAB – e de mergulhar na incomunicabilidade -, Seitenfus falou ao Estado, por telefone. Ainda abalado, o representante da OEA, que estava preparando as eleições para o Parlamento, em 28 de fevereiro, prevê que elas serão canceladas. “O Haiti volta 15 anos atrás”, lamenta. “A maior injustiça feita a um povo das Américas foi essa.” Ele adverte que haverá saques e manifestações violentas.

Por que o senhor está voltando?

Por várias razões. Primeiro, porque não há mais representantes da ONU no Haiti. Os dois faleceram. Caiu o prédio da ONU e eles foram soterrados. Não tem ninguém dos organismos internacionais. Outra razão é que estou muito preocupado, porque não há notícia nenhuma dos meus funcionários. Em terceiro lugar, tem uma reunião na sede da OEA do Grupo de Países Amigos do Haiti agora, para definir uma estratégia de auxílio imediato ao Haiti, e eu preciso estar no país. Isso me custa muito, mas é uma obrigação moral.

Quantos funcionários vocês têm lá?

Quase cem, com todos os projetos, dos quais dez estrangeiros e o restante, haitianos.

Como estava o Haiti ultimamente?

Estava melhorando. Tínhamos todo um planejamento político para este ano. Haveria eleições para o Parlamento, dia 28 de fevereiro, com segundo turno no início de março. As eleições presidenciais seriam em novembro. Enfim, seria um ano essencialmente político, de reforma constitucional e reformas institucionais. Tudo isso veio por água abaixo. Acho que o Haiti volta 15 anos atrás.

Como o senhor se sente?

Muito mal. Ontem (terça-feira) à noite, quando eu soube que o palácio tinha sido atingido, que a catedral havia sido derrubada, que o hospital de Petionville também, que a sede das Nações Unidas havia caído, imaginei aquelas casinhas coladas nos flancos das montanhas em volta de Porto Príncipe. A maior injustiça feita a um povo das Américas foi essa. Os haitianos não mereciam.

O senhor acha que isso pode unir os haitianos?

Essa é a minha grande preocupação. Tenho muita dificuldade em fazer o que eu chamo de tirar o bode político da sala do povo haitiano, para que finalmente eles caminhem no mesmo sentido. Há muito egoísmo dos políticos, que têm o povo como refém. Espero que isso possa dar a eles uma consciência. Mas eles são muito duros entre eles. O fundamental agora é tentar salvar as pessoas que estão sob os escombros. Você vê pelas imagens que não há uma única pessoa com uniforme fazendo esse tipo de trabalho, ou seja, não há nenhum serviço de resgate, nem da Minustah (missão da ONU) nem do governo haitiano, nada. São os civis que estão tentando, com as mãos nuas, tirar as pessoas lá de dentro.

Por quê?

Porque, pela primeira vez, o sistema das Nações Unidas foi fortemente atingido. Temos dezenas de estrangeiros, civis e militares mortos. E não existe defesa civil no Haiti. Não há um helicóptero do governo, não há um guindaste, um cão farejador, não há nada.

O senhor teme saques?

Sem dúvida. Haverá movimentos de protesto, bloqueios de estradas e ruas, queima de pneus, manifestações violentas e saques. A ausência de qualquer auxílio ao povo que está embaixo da terra vai ser muito mal recebida.

As eleições podem ser mantidas para este ano?

Não. Mas não sou eu que decido, é o Conselho Eleitoral Provisório. Estávamos organizando tudo, sob supervisão da OEA, com financiamento internacional, tudo certinho. Mas não vejo condições de fazer essas eleições agora, no fim de fevereiro.

Publicado em O Estadão. Copyright: Grupo Estado. Todos os direitos reservados.

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