Enterros sem rituais violam preceitos do vodu

Corpos são queimados ou enterrados sem os ritos funerais que, segundo os praticantes, evitam que os espíritos assombrem os vivos

PORTO PRÍNCIPE – À medida que os corpos vão sendo queimados ou enterrados em valas comuns, sem sequer serem identificados, uma nova preocupação assombra os haitianos. De acordo com a crença vodu, os espíritos dos mortos que não passam pelos rituais funerários não descansam em paz, e passam a perseguir seus familiares, por não os terem liberado da forma apropriada. Os pesadelos e sobressaltos noturnos são manifestação disso.

No rito de “expedição” dos mortos, os fiéis da religião tradicional haitiana cantam preces, enquanto os espíritos esperam com a cabeça para baixo, em posição de penitência, explica o hougan (sacerdote vodu) John Clément, de 28 anos. Feitas as orações, eles podem ir descansar, sobre uma fonte de água ou a sombra de uma árvore. Caso contrário, permanecem na posição incômoda, como se estivessem presos.

No seu terreiro no alto da favela de Pelerin, cujos barracos de alvenaria se equilibram milagrosamente na encosta do morro, Clément interpreta as razões que levaram os deuses a impor mais essa catástrofe aos haitianos, já castigados por furacões, pela miséria e pela incapacidade de manter um regime minimamente estável: “Os deuses castigam o povo, porque ele não segue a sua vontade, não obedece suas ordens”, diz o sacerdote, ao lado de uma mulher de 25 anos, deitada numa cama e completamente envolta num lençol, que está sendo tratada por ter sido possuída por “maus espíritos”. No outro canto da sala, pequenas espadas usadas nos rituais de vodu, e, nas paredes, a bandeira azul e vermelha de São Jacques Majeur, a amarela e branca da Sereia e a preta do diabo Lesifer (ou Lúcifer).

Ao pé do morro, centenas de pessoas disputam espaço numa efervescente feira de verduras e frutas. A cena contrasta com o resto da cidade, onde a maioria das lojas está fechada e o mercado central foi destruído. Aqueles que ainda têm dinheiro fazem pequenas compras para o almoço, na manhã ensolarada de sábado. Apesar da ausência de policiais e seguranças, não há incidentes.

Na parte mais alta do mesmo morro, fica o bairro elegante de Petionville, onde moram as famílias ricas do Haiti. Embora também estejam na encosta do morro, as casas, bem construídas, em geral não sofreram abalos com o terremoto de terça-feira.

Publicado em O Estadão. Copyright: Grupo Estado. Todos os direitos reservados.

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