Embaixada brasileira revela abismo social do país

Apesar de discurso de ‘igualdade’, Zelaya, assessores e primeira-dama têm mais espaço privado na missão do que os outros 50 ocupantes

TEGUCIGALPA – As 60 pessoas que ocupam a Embaixada do Brasil em Tegucigalpa formam um microcosmo da sociedade. Agricultores, operários, professores, um sargento, um bailarino, um médico, pequenos empresários, um padre, um diplomata, jornalistas, uma ex-ministra, um presidente e sua primeira-dama dividem os cerca de 400 metros quadrados do sobrado.

O discurso da “resistência popular” e de “igualdade” une Manuel Zelaya e os assessores do presidente deposto às pessoas simples que os acompanham. Mas Zelaya, a primeira-dama, Xiomara, e seus assessores ocupam a ampla sala do embaixador, duas outras salas, a biblioteca e dois banheiros com chuveiros – mais espaço privado que os outros 50 ocupantes juntos, que ficam com três banheiros, apenas um com ducha.

Há três categorias de comida: o presidente e seus assessores recebem seus pratos prediletos, feitos por Margarita, cozinheira dos Zelaya há 30 anos; os jornalistas compram comida de pronta entrega de um restaurante das redondezas, paga por colegas que estão de fora; o resto come marmitas trazidas pelo Comitê de Direitos Humanos. Todas chegam abertas, pela revista da polícia, que envolve cães farejadores.

Zelaya, Xiomara, seus assessores e os jornalistas dormem em colchões de ar e sacos de dormir. Os outros 40 espalham-se pelos sofás e pelo chão, porque a polícia não permitiu a entrada de colchões para eles.

O ânimo das pessoas, a organização e a limpeza poderiam ser bem piores, considerando o confinamento de três semanas. O jardim é mantido impecável por Emmo Sadloo, de 53 anos, dono de uma loja de pneus e rodas esportivas em Tegucigalpa. Nascido na Guiana, naturalizado hondurenho, Sadloo ainda fala espanhol com sotaque, embora tenha vindo há 34 anos.

Sua cabeça está sempre coberta com um lenço vermelho que diz “Mel (Manuel Zelaya), a vitória é de todos, o povo te apoia”. Sua camiseta, também vermelha, traz um sol com a sigla Alba (Aliança Bolivariana das Américas, liderada pelo presidente da Venezuela, Hugo Chávez) e um desenho de Simón Bolívar de frente para Francisco Morazán, o herói da independência hondurenha. Sadloo comanda os negócios pelo celular e admite estar preso na casa. “Se eu sair agora, me prendem”, diz o comerciante. “Estão negociando para que todas as acusações contra o presidente e os outros sejam retiradas.”

ÓCIO CRIATIVO

O ócio é quebrado por muitas distrações. Além das aulas de aeróbica, dos saraus de música com instrumentos improvisados, das notícias pelo rádio, das discussões político-ideológicas e do entra-e-sai de mediadores internacionais, a polícia e o Exército também oferecem atrações, como a instalação de um andaime hidráulico (uma grua grande) na frente da embaixada, na noite de quinta-feira, com dois homens armados de fuzis, elevando-se ao nível do segundo andar do sobrado.

Até Zelaya, que nunca se expõe na sacada, por medo de “francoatiradores”, veio olhar a novidade. Mas, quando um cinegrafista dirigiu a luz de sua câmera para o grupo que se formou em torno do presidente, a primeira-dama repreendeu-o: “Quer que nos matem?”

Luis Galdanes, repórter da Rádio Globo que, apesar de fechada pelo governo de facto por seu apoio a Zelaya, segue sendo transmitida via internet, foi para a frente da sacada e começou a provocar os soldados, gritando ao telefone que “os golpistas” usavam “mercenários”. Zelaya mandou que Galdanes, mais radical que o próprio presidente deposto, saísse da sacada.

Muitos estão na embaixada quase por acaso. Entraram fugindo dos policiais que reprimiam a manifestação em favor de Zelaya e agora só podem sair com o presidente – única chance de não serem perseguidos pela polícia. Zelaya representa também uma possibilidade de emprego no governo, se for restituído ao cargo – hipótese a cada dia mais remota.

É o caso de Fúlvio César Torres, de 60 anos, que trabalhava como mecânico de uma construtora. “Vim ver Mel e não pude sair”, diz ele. “Acho que fui demitido”, supõe. “Não falei mais com meus patrões, porque são golpistas. Não sei como estará a situação, se o presidente ocupar o cargo outra vez. De qualquer jeito, teremos problemas, porque as autoridades de segurança são golpistas.”

Publicado em O Estadão. Copyright: Grupo Estado. Todos os direitos reservados.

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