‘Bush não pode dar o que interessa ao Brasil’

Para especialista, republicanos não vão contrariar concorrentes dos brasileiros

PORTO ALEGRE – Este não é um bom momento para o Brasil negociar com os Estados Unidos a formação da Área de Livre Comércio das Américas (Alca). Isso porque o presidente George W. Bush não pode prescindir, nas eleições de 2004, do apoio político e financeiro de setores que não querem competir com os produtos brasileiros. A opinião é de Lori Wallach, diretora de comércio global da organização não-governamental americana Public Citizen.

Para obter um acordo favorável, o Brasil precisa tomar consciência de que é o único país no qual os EUA estão realmente interessados, diz Lori, que trabalha em estreito contato com os lobistas e congressistas em Washington. Ela acha que o Brasil não se deve deixar pressionar por acordos dos EUA com países pequenos, como o Chile, ou por frases de efeito, como “a alternativa é fazer comércio com a Antártida”.

Lori, formada em direito comercial em Harvard, deu entrevista ao Estado na segunda-feira, em Porto Alegre, onde participou do Fórum Social Mundial.

Estado – A sra. acha possível transformar a Alca em algo interessante para o Brasil?

Lori Wallach – Há três possibilidades, duas delas boas para o Brasil: negociar um novo formato ou não assinar acordo. A terceira, aceitar a Alca no modelo atual, seria uma catástrofe. O projeto é muito claro, é igual ao Nafta (Acordo de Livre Comércio da América do Norte).

Estado – O que significa ser igual ao Nafta?

Lori – Não é bem um acordo de livre comércio. É mais uma imposição de políticas governamentais, sobretudo nas áreas de investimentos, uso da terra, serviços e política industrial. O Nafta tem algumas regras sobre comércio. Por exemplo, permite que os subsídios à agricultura continuem. Mas a parte de comércio é pequena.

Estado – O que ele prevê sobre uso da terra?

Lori – O capítulo sobre investimentos inclui o “direito de estabelecimento”, que garante às companhias estrangeiras o direito de ter investimentos nos países signatários do acordo. No caso da Alca, as companhias americanas querem se apropriar dos recursos da Amazônia. “Investimento”, nesse caso, tem um sentido muito amplo – não são só fábricas, mas, também, terras, moeda, ações na Bolsa de Valores, etc. No México, por exemplo, a Constituição continha artigos sobre a reforma agrária, desde a Revolução (1910-20). Para adequar a legislação mexicana ao Nafta, emendaram a Constituição e se livraram dos limites sobre a concentração de terras, das exigências de aprovação governamental para a compra de terras e das restrições a proprietários estrangeiros. Uma companhia agora pode comprar metade de um Estado do México, se tiver dinheiro para isso.

Estado – A sra. acha que o Nafta não foi um bom negócio para o México?

Lori – O Nafta não foi bom para nenhum dos três países que o firmaram (também EUA e Canadá), mas o México ficou com a pior parte – e acho que ocorreria o mesmo com o Brasil na Alca. Os grandes do agronegócio americano, como a Del Monte e Green Giant, compraram fazendas. Os pequenos agricultores deixaram suas terras e hoje recebem 5 pesos por dia para trabalhar nas grandes multinacionais, que por sua vez reexportam de volta para o México. O Nafta garante aos estrangeiros o acesso ao mercado varejista, o que colocou contra a parede os fabricantes mexicanos de bens de consumo, como sapatos, brinquedos, produtos de culinária, assim como as lojas. Hoje, há um grande movimento da classe média mexicana contra o Nafta, com mais de 1 milhão de participantes. São pessoas que apoiaram o Nafta inicialmente porque acreditavam que traria desenvolvimento. Tinham lojas e pequenas fábricas e tiveram que fechar as portas, porque agora a K-Marts, a Wal-Mart são os grandes varejistas e compram os produtos na China para vender no México, em detrimento dos fabricantes locais. Na fronteira, tem havido mais investimentos.

Estado – Algumas maquiadoras se tornaram indústrias de verdade, não?

Lori – As maquiadoras são o único setor no qual se criaram novos empregos: 800 mil, de 1.º de janeiro de 1994, quando o Nafta entrou em vigor, até hoje. Mas, segundo as estatísticas, no mesmo período, a perda de postos de trabalho no comércio varejista e nas pequenas indústrias foi de 2 a 2,5 milhões, e 5 milhões de famílias de agricultores perderam seu meio de sustento. O Nafta, assim como o atual projeto da Alca, permite aos EUA continuarem a subsidiar a agricultura. Então, de que adianta tarifa zero, se o produtor americano tem o subsídio do governo, e o mexicano não tem subsídio algum? O produtor mexicano não vai conseguir entrar no mercado americano, mesmo que consiga produzir a um custo mais baixo. Para os EUA, custa mais caro produzir soja ou carne bovina do que para o Brasil, mas, por causa dos subsídios, o Brasil não pode competir no mercado americano. Portanto, o Nafta não criou livre comércio e ainda por cima abriu as portas para o investimento.

Estado – Isso pode acontecer também com a Alca?

Lori – Exatamente como no Nafta, o capítulo sobre investimentos representa a maior parte do acordo. E o principal alvo é o Brasil. Porque a maioria dos outros países já cederam tudo, por exigência do FMI. Já abriram o uso da terra, a água, etc., para os investidores estrangeiros. E não têm política industrial. O Brasil ainda tem leis sobre limites mínimos de componentes nacionais em produtos industriais, ou que exigem transferência de tecnologia como condição para investimentos – os mesmos instrumentos que os EUA usaram contra a Europa na virada do século passado para se desenvolver; que o Japão usou contra os EUA nos anos 60 para se desenvolver; que a Coréia e os Tigres Asiáticos usaram contra os EUA, o Japão e a Europa. O Brasil é um dos poucos países em desenvolvimento onde essas políticas não foram eliminados pelo FMI. Portanto, a Alca, sob o modelo do Nafta, é uma forma de os EUA manterem o Brasil como reserva de mão-de-obra e de recursos naturais baratos, não um concorrente verdadeiro das indústrias americanas.

Estado – Em que o Nafta foi ruim para os EUA?

Lori – As regras de investimento do Nafta incluem um mecanismo maluco, que aposto que a maioria das pessoas não sabe que consta também do projeto da Alca. Ele permite à iniciativa privada obrigar o setor público a respeitar os direitos previstos no tratado. Normalmente, por exemplo, se o Brasil acha que os EUA estão trapaceando no setor de algodão, o representante brasileiro em Genebra entra com uma ação contra os EUA na OMC (Organização Mundial do Comércio). No Nafta e no esboço da Alca, há uma norma que permite a corporações e a investidores estrangeiros cobrar seus direitos nos “tribunais” do Nafta (ou da Alca). Eles não precisam ir aos tribunais do Brasil ou dos EUA. Os governos não têm o direito de processar as empresas; só as empresas é que têm o direito de processar os governos, exigindo indenização. No Nafta, já houve 20 casos como esse. Num deles, uma companhia americana usou o direito de investidor para comprar terra de uma empresa mexicana. A terra está numa zona proibida para a indústria, porque fica sobre um lençol freático. A empresa mexicana a havia comprado para fazer ali um depósito de lixo tóxico. O governo impediu e ela vendeu a propriedade para a empresa americana, que também quis fazer o mesmo tipo de depósito. Usando as normas do Nafta, ela processou o governo mexicano, alegando que a lei de zoneamento havia frustrado a sua expectativa de lucro futuro, garantida pelos direitos do investidor. O Tesouro federal mexicano teve de desembolsar US$ 22 milhões de indenização. Noutro caso, a americana United Parcel Service (UPS) está usando essa norma contra os Correios do Canadá, por terem o monopólio da entrega de cartas. Esse tipo de monopólio existe em todos os países. Mas os Correios canadenses também entregam encomendas. E a UPS argumenta que se trata de um subsídio cruzado, porque o mesmo caminhão que entrega cartas com o benefício do monopólio também transporta pacotes. Há muitos casos desses nos três países. Estudo da Universidade de Cornell mostra que, quando os trabalhadores americanos fazem reivindicações, muitas empresas ameaçam transferir para o México. E os sindicatos se curvam. Pelo Nafta, e pelo esboço da Alca, não pode haver inspeções na fronteira. Então, uma empresa americana criminosa, que sabe que seu produto alimentício não será aprovado pela fiscalização dos EUA, exporta para o Canadá ou para o México, que são obrigados a aceitar a mercadoria. Houve um caso em que morangos contaminados vindos do México sem inspeção foram distribuídos na merenda das escolas públicas americanas.

Estado – A sra. dizia que há duas possibilidades de o Brasil se dar bem na negociação da Alca.

Lori – Uma delas é não fazer acordo. É uma opção melhor, para o Brasil, do que seguir o modelo do Nafta. A outra é fazer um acordo diferente. Eu trabalho em Washington e converso o tempo todo com os congressistas, e minha percepção política me diz que a única maneira de o Brasil adquirir poder de negociação para obter um acordo diferente é deixar claro que não haverá acordo nenhum. Porque, se os EUA pensarem que o Brasil no fim das contas vai se render, não farão concessão alguma. Se os EUA sentirem a possibilidade de não haver Alca alguma, há uma chance – não estou dizendo que será fácil – de algo diferente. Porque a única coisa que os EUA realmente querem é o Brasil. Esse é o segredo que todo mundo sabe em Washington. Os EUA já têm acordos bilaterais com o Chile, com a República Dominicana, há o Acordo de Livre Comércio da América Central, etc. E os EUA acham que essa é uma boa estratégia para seduzir o Brasil. O representante comercial dos EUA, Robert Zoellick, procura usar de psicologia, achando que o Brasil vai ficar preocupado porque o Chile já tem um acordo. A realidade é que o empresariado americano não liga a mínima para nenhum outro país. Na verdade, eles pensam que o governo americano está perdendo tempo. Eles perguntam: “Quem se importa com o Chile, El Salvador, Panamá? Olhe para o Brasil!”

Estado – Mas deve haver grupos de pressão muito fortes, aos quais interessa repetir, na Alca, o modelo do Nafta. O governo poderia abrir mão do apoio deles no Congresso?

Lori – Não creio que, no curto prazo, com os republicanos dominando a Câmara dos Deputados e o Senado, eles serão abandonados. Porque é daí que vem o dinheiro. Há muitos setores importantes. Há o agronegócio, que está muito aborrecido com a lei brasileira que restringe os transgênicos. Eles acreditam que, se a União Européia e o Brasil proibirem os transgênicos, o resto do mundo os seguirá e eles morrerão. Outro é a indústria farmacêutica, que está histérica com o fato de o Brasil ter criado as condições de ter uma verdadeira indústria de genéricos. Então, eles pressionam em favor das regras de investimentos e de propriedade intelectual, que estão no esboço da Alca. Além disso, há um série de indústrias que querem ganhar mercado aqui. Por fim, e talvez mais importante, há o setor de serviços: bancos, companhias telefônicas, energéticas e mineradoras – que querem o gás natural e os minerais – e as madeireiras, que querem todas as riquezas da Amazônia. Pelo Nafta, o extrativismo – por exemplo, o corte de madeira – é um serviço. O comércio da madeira já foi liberado na OMC. Agora, falta o direito de cortá-la, que ainda é controlado. As madeireiras pretendem obtê-lo com o capítulo de serviços da Alca.

Estado – Pelo que a sra. está dizendo, para mudar o modelo da Alca são necessárias mudanças políticas nos EUA.

Lori – Sim, acho que é isso que precisa acontecer. O clima atual não é bom para o Brasil obter um bom acordo. Todo o discurso do governo Bush de apoio ideológico ao livre comércio é conversa fiada. Eles estão interessados em obter bons acordos para as corporações que os apoiaram financeira e politicamente. É um comércio gerido, não livre comércio. E eles querem geri-lo dando acesso a outros países para as companhias a que desejam retribuir, sem que as indústrias sofram concorrência nos EUA. Enquanto esses republicanos mercantilistas estiverem dominando tudo, será muito difícil imaginar um acordo. Mas eles não vão ficar lá pelo resto da vida. Acho que o que o Brasil deve fazer agora é apresentar suas exigências aos EUA: “Vocês querem um acordo de livre comércio para valer? Tudo bem. Precisamos de acesso ao seu mercado para os nossos cítricos, soja, carne bovina, aço e indústrias, e queremos nos livrar de seus subsídios à agricultura, porque não podemos competir com isso. Se vocês estiverem dispostos a fazer essas coisas, então podemos negociar.” Isso deixaria claro que são os EUA que têm sido protecionistas, que não são sinceros quanto ao que eles querem.

Estado – Mas o que poderia acontecer, politicamente?

Lori – O presidente Bush está numa posição política muito curiosa. Enquanto ele está tentando fazer o Brasil ter medo de se sentir excluído se não fizer concessões, a realidade é que o imperador está nu. Porque as coisas de que o Brasil necessita, tanto na Alca quanto na OMC, são exatamente o que Bush não pode conceder, se quiser ganhar a eleição de 2004. Na maioria dos Estados, os republicanos ou os democratas sempre ganham. Eles disputam para valer em 15 Estados. Em cada um deles há produtos importantes nos quais o Brasil tem vantagens comparativas. Para se eleger, Bush precisa ganhar na Flórida, que tem dois grandes produtos de exportação: cítricos e carne bovina. Também precisa dos 11 votos eleitorais de Dakota do Sul e do Norte e Montana, onde ora ganham os republicanos, ora os democratas. Eles produzem duralumínio – os EUA baniram suas importações do Brasil com uma ação antidumping -, soja e carne bovina. Também tem de vencer em Ohio, Pensilvânia, Illinois, Indiana e West Virginia, todos produtores de aço e extremamente interessados em ações antidumping. Portanto, Bush simplesmente não pode negociar aquilo que interessa ao Brasil. O que ele quer é poder culpar Lula (de um eventual fracasso da Alca), tachando-o de esquerdista. Se Lula se mostrar interessado em negociar para valer, Bush acabará aparecendo como o culpado. Então os EUA desacelerariam as negociações e inverteriam as posições. E o Brasil esperaria até haver nos EUA alguém realmente disposto a negociar um acordo.

Estado – Os democratas não precisam daqueles Estados também para se eleger?

Lori – Os democratas podem fazer concessões nesses Estados, porque eles têm redutos fora desses setores. Eles não têm o apoio dos laboratórios farmacêuticos, dos bancos, companhias de seguro, etc, com os quais os republicanos contam. Os democratas têm mais espaço e flexibilidade em seus redutos eleitorais, para dispensar esses setores.

Estado – Zoellick disse que a alternativa à Alca, para o Brasil, seria fazer comércio com a Antártida. O Brasil não deve se preocupar com isso?

Lori – Zoellick pensa que o Brasil não percebe que é o único país no qual os EUA estão interessados. Nos EUA, há um ditado: paus e pedras podem quebrar meus ossos, mas palavras não vão me ferir. Carne bovina e soja vão tirar Bush da Casa Branca, mas os pingüins não vão ferir vocês. Como Zoellick não pode fazer concessões sobre carne e soja, ele tem que fazer caretas para o Brasil. Mas é muito engraçado que os EUA digam ao Brasil: “Você devia se preocupar, você vai ficar com os pingüins e nós, com o Chile ou o Panamá”. Provavelmente, os pingüins são melhores. Seria muito interessante se o Brasil obrigasse os EUA a mostrar as cartas que têm, dizendo: preferimos os pingüins a um acordo injusto. 

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