Cem dias de imprevisibilidade

TRUMP NA CASA BRANCA: seu índice de aprovação é o menor para os primeiros 100 dias desde o início da série histórica/ Carlos Barria/ Reuters

O presidente Donald Trump completa 100 dias no cargo neste sábado. Os resultados são variados em cada área, mas há uma marca em comum: a imprevisibilidade. Por toda parte, há surpresas, em geral positivas: ou porque ele não conseguiu fazer o que prometera, ou porque recuou, ou porque realmente mudou para um rumo melhor. No comércio, a terra arrasada (ainda) não se confirmou; na política externa e de defesa, as alianças, alinhamentos e princípios foram preservados; internamente, ele está patinando, e isso não é necessariamente ruim.

Essa é, no entanto, uma avaliação a frio, despida das paixões (e ilusões) provocadas durante a campanha. Em face das imensas expectativas que Trump despertou em seus eleitores, parte deles já está decepcionada. Seu índice de aprovação, segundo pesquisa do jornal The Washington Post e da rede de TV ABC, está em 42 por cento, e de acordo com a CNN/ORC, 44 por cento. É a menor aos 100 dias de mandato desde que a série histórica teve início, no começo do governo de Dwight Eisenhower, em 1953.
A taxa de reprovação de Trump, 53 por cento, está 14 pontos abaixo da de Bill Clinton, que até então era a pior aos 100 dias. Nessa fase de seu primeiro mandato, a aprovação de Barack Obama era 69 por cento e a reprovação, 26 por cento.
No plano interno — que é o que mais influi nos sentimentos dos cidadãos comuns, quando o país não está em guerra —, Trump ainda não cumpriu as promessas de substituir o sistema de saúde introduzido por Obama em 2010, proibir a entrada de imigrantes e de produtos baratos da China, do México e de outros países e adotar medidas de estímulo à economia. De novo: são apenas 100 dias, mas foi Trump quem empurrou a barra das expectativas lá para cima, prometendo mudanças radicais e instantâneas.

Além disso, sobretudo na política comercial, Trump tem se mostrado bem mais cauteloso do que suas declarações incendiárias antecipavam. E, na política externa e de defesa, tem demonstrado um engajamento nos problemas do mundo que põe em dúvida sua promessa de colocar “a América em primeiro lugar”, o que seus eleitores entenderam como focar nos problemas domésticos.

Como forma de compensar pela “traição”, aqui e ali ouviremos a retórica do “Trump da campanha”, sobretudo em temas morais — um pouco como o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva usava a política externa para paparicar Hugo Chávez e Evo Morales, e assim provar que ainda tinha uma “alma de esquerda”, enquanto tocava adiante as políticas “neoliberais” de Fernando Henrique Cardoso.

Foi assim nessa sexta-feira, quando Trump prometeu, no encontro anual em Atlanta da Associação Americana do Rifle, maior doadora de sua campanha (além da Organização Trump, claro): “Agências federais não perseguirão mais donos de armas respeitadores da lei. O governo não tentará mais minar seus direitos e liberdades como americanos”. Mas não anunciou nenhuma medida concreta.

Trump fez duas tentativas mal-sucedidas de coibir por decreto a entrada de muçulmanos e de refugiados, ambas barradas pela Justiça, por violar a Constituição e a lei, que impedem discriminação por religião e origem nacional. Nessa terça-feira, sua política de imigração sofreu mais um revés: um juiz em São Francisco, Califórnia, concedeu liminar contra um dispositivo do seu primeiro decreto, de 25 de janeiro, que retinha verbas federais para cidades que não reprimem imigrantes ilegais.

Ainda nesta semana, Trump recuou da ameaça de não assinar a lei do orçamento federal para o próximo ano fiscal (que começa em outubro) se não forem incluídos recursos para a construção do muro na fronteira com o México. Em um movimento bem ao seu estilo, seu governo afirmou ter conseguido, com suas pressões, o apoio da oposição democrata para a destinação de verbas substanciais para a segurança na fronteira.

Trump tenta cultivar a todo custo sua imagem de negociador, que saiu seriamente chamuscada do fracasso na votação da Lei Americana de Atendimento à Saúde. Apesar de seu empenho pessoal, o presidente não conseguiu vencer em março as resistências de congressistas de sua própria maioria republicana para aprovar o sistema que substituiria a Lei de Atendimento Acessível, ou Obamacare. Nova tentativa foi feita nesta semana, antes de o governo completar 100 dias, mas fracassou novamente.

No Congresso, o principal feito do governo até agora foi a aprovação do nome do juiz Neil Gorsuch para uma vaga existente na Corte Suprema desde fevereiro de 2016. A bancada republicana no Senado impediu a aprovação do nome indicado por Obama. Para obter a nomeação, os republicanos eliminaram uma regra que permitia à minoria obstruir as votações. Com isso, abriu-se o caminho para outras nomeações conservadoras na Corte, quando se abrirem novas vagas pela morte dos juízes.

Outra promessa conservadora cumprida por Trump, já em 24 de janeiro, quatro dias depois de sua posse, foi o desengavetamento dos projetos de oleoduto de Keystone XL e Dakota Access, que haviam sido abandonados por Obama, por causa das preocupações com o impacto ambiental e com danos para comunidades indígenas.

Na quarta-feira, o governo finalmente anunciou que vai apresentar a proposta de reforma tributária, exatamente na linha do que foi prometido na campanha. A proposta reduz as alíquotas do imposto de renda de sete para três: 10, 25 e 35 por cento, sendo que a mais alta fica abaixo da atual, de 39,6 por cento. Além disso, os impostos sobre as empresas caem de 35% para 15%, e taxações sobre propriedades são eliminadas.

O governo não divulgou o impacto sobre a arrecadação. Mas o Comitê por um Orçamento Federal Responsável calculou a renúncia em 5,5 trilhões de dólares ao longo de dez anos. Outro cálculo fala em 7 trilhões. Também nesse caso, há resistências na bancada republicana, por causa do risco de aumento do déficit público, que chegou a 3,2% em 2016, o maior dos últimos três anos.

Trump garante que o estímulo à atividade econômica resultante da diminuição dos impostos aumentará a base arrecadatória. Mas isso é apenas uma aposta. O mercado acredita que o Federal Reserve (banco central americano) continuará elevando a taxa básica de juros para conter as pressões inflacionárias produzidas por esse estímulo. Mesmo assim, há um clima de euforia nas bolsas americanas.

A ameaça de “rasgar” o Acordo de Livre Comércio da América do Norte (Nafta) está esquecida. Ministros americanos e mexicanos têm se reunido sistemática e discretamente, para alinhavar mudanças no acordo. O próprio Trump tem dito que o resultado beneficiará todos os três participantes, que incluem também o Canadá.

A CNN contou quantas vezes Trump foi a seu balneário de Mar-a-Lago, na Flórida — 7 — e quantas aos seus campos de golfe — 19 — desde que assumiu. Mas uma visão mais condescendente poderia apontar para o fato de que em vários desses casos Trump estava trabalhando: o primeiro-ministro japonês, Shinzo Abe, e o presidente chinês, Xi Jinping, estiveram entre seus convidados.

Poderíamos estar diante de uma “diplomacia do golfe”, reminiscente da “diplomacia do pingue-pongue” que quebrou o gelo entre EUA e China no início dos anos 70? É cedo para dizer, mas o fato é que a estratégia de Trump de colocar tudo sobre a mesa — comércio, política externa e defesa — com Xi tem dado resultado.

Seguindo seu manual de negociação, Trump ameaçou reconhecer Taiwan — um tabu para Pequim, que impõe a política de uma China como a base de suas relações bilaterais. Isso se tornou um trunfo, que ele usou em troca de mais pressão contra a Coreia do Norte. Depois de reafirmar a política de uma China, Trump obteve de Xi a suspensão das importações de carvão da Coreia do Norte.

O presidente americano abandonou a ameaça de acusar a China de manipular o câmbio, e com isso afastou a linguagem que poderia levá-lo a impor as tais tarifas de 45% sobre os produtos chineses, prometidas durante a campanha. Agora, a China fala em cortar o suprimento de petróleo para seus aliados norte-coreanos, que nessa sexta-feira tentaram disparar mais um míssil contra o Mar do Japão, mas que pela segunda vez consecutiva falhou.

A política de defesa de Trump começou mal. Em janeiro, ele autorizou uma operação contra alvos da Al-Qaeda no Iêmen que terminou com a morte de um integrante da força de elite Seal da Marinha. Depois da substituição do conselheiro de Segurança Nacional e de mudanças nos processos de tomada de decisão do conselho, que saiu das mãos de seu marqueteiro, Stephen Bannon, e voltou para as mãos dos comandantes militares, o governo americano começou a colher frutos.

A destruição, com mísseis de cruzeiro, da base síria de Shayrat, de onde partiram os aviões que executaram o ataque com armas químicas, no início de abril, foi aprovada pelos principais aliados europeus dos EUA. E afastou o receio de que Trump pudesse se aliar ao presidente russo, Vladimir Putin, em apoio à ditadura síria, às investidas russas contra a Ucrânia e até mesmo contra os aliados da Otan no Leste Europeu.

Os 59 Tomahawks disparados de dois destróieres no Mediterrâneo dissiparam essas dúvidas, reforçadas pelas investigações que apontaram a ação de hackers a serviço do Kremlin contra a campanha da candidata democrata Hillary Clinton, e também sobre as relações entre membros da campanha de Trump e autoridades e empresários russos.

Por fim, o emprego, pela primeira vez, da “mãe de todas as bombas” contra alvos do Estado Islâmico no Afeganistão desfizeram o temor de que os EUA sob Trump poderiam se desengajar de campanhas militares apoiadas pelos aliados europeus. Isso inclui a mudança de linguagem de Trump com relação à Otan, que ele deixou de considerar “obsoleta”, embora continue pressionando para que os aliados aumentem os gastos com defesa, para diminuir sua dependência dos americanos.

Nada disso lembra a extravagância do Trump em campanha, mas sim converge para um “business as usual”, as disputas e fricções normais das relações dos EUA com aliados geopolíticos e parceiros comerciais.

“Depois de cem dias, está claro que a administração é bem menos revolucionária na prática do que a retórica de campanha sugeria”, analisa Ian Lesser, do centro de estudos americano German Marshall Fund, em Bruxelas. “Olhando para a frente, a liderança de Bruxelas (“capital” da União Europeia) pode se preocupar menos com o isolacionismo dos EUA — que nunca esteve realmente entre as cartas — e mais com os desafios de um unilateralismo americano.”

Pelo menos é um desafio conhecido.

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