Espírito da contracultura renasce nos Estados Unidos

Marcha das mulheres contra Donald Trump no dia seguinte à posse, nos Estados Unidos/ Stephanie Keith/Reuters

Na fria e ensolarada manhã do dia 21 de janeiro, peguei o ônibus L2 no alto da Avenida Connecticut, noroeste de Washington DC, em direção ao centro — e à grande marcha das mulheres em protesto contra a posse do presidente Donald Trump. A cada ponto, mais e mais mulheres — e também homens, em menor número — iam subindo, até que o ônibus ficou lotado, coisa rara em Washington, ainda mais num sábado.

Os manifestantes subiam com cartazes, faixas e camisetas estampando recados para Trump, para as mulheres, para o mundo. Conforme o L2 lotou, algumas começaram a organizar a ocupação dele: “Tem um lugar ali atrás”, indicavam, para alguém mais necessitado de um assento. E assim logo o L2 se transformou num alegre “coletivo” (não no sentido de um ônibus, mas de um grupo organizado).

Ali uma pergunta que me ocorrera na véspera, na posse de Trump, ao observar o heterogêneo grupo de pessoas que saiu para protestar, aterrissou de novo no meu pensamento, dessa vez para ficar: será que a reação ao governo Trump pode criar um movimento parecido com a contracultura dos anos 60, provocada pela perseguição aos comunistas, pela guerra do Vietnã, pela pílula anticoncepcional e pelo assassinato do líder negro Martin Luther King Jr.?

Comparações históricas são sempre um exercício fácil de desmontar, apontando mais diferenças do que semelhanças entre duas épocas distintas. Mas elas têm uma utilidade, e é por isso que são tão tentadoras: ajudam a pensar um fenômeno ainda em andamento, imerso na confusão inerente ao turbilhão das mudanças, com uma perspectiva histórica — uma moldura que serve não para delimitar, mas apenas para orientar o olhar, distinguir entre o essencial e o acidental.

Naquele sábado, foram registradas manifestações em 550 cidades americanas, somando entre 3,6 milhões e 4,6 milhões, segundo diferentes cálculos, compilados pelo site da revista The Atlantic. Mesmo pela estimativa conservadora, foi a maior manifestação da história dos Estados Unidos. Houve protestos também em cerca de cem cidades noutros países. Em Washington, a maior delas, os cálculos variaram entre 470 mil e 680 mil participantes.

O metrô de Washington registrou 1.001.613 viagens no sábado — o segundo maior número de sua história, só superado pelo dia da posse de Barack Obama, em 2009. Na véspera, quando Trump tomou posse, foram 570.557. Segundo especialistas, a posse de Trump atraiu 160 mil pessoas.

A ideia da marcha foi lançada por uma avó do Havaí, no dia seguinte à derrota de Hillary Clinton, 9 de novembro, em um post no Facebook. Logo se espalhou como uma onda, e formou-se um comitê organizador — que solicitou à prefeitura de Washington (encabeçada pela democrata negra Muriel Bowser, que participou do protesto) permissão para reunir 200 mil pessoas.

Muitas mulheres, e alguns homens também, enfrentaram o frio ao redor de zero grau com tocas cor-de-rosa. À motivação principal — garantir as conquistas das mulheres, como o direito ao aborto (consolidado na Corte Suprema em 1973, no auge da contracultura) — somaram-se outras, como os direitos dos imigrantes, dos homossexuais, dos negros e das pessoas com deficiências.

Cerca de 50 pessoas, entre ativistas e artistas, revezaram-se no palanque erguido numa extremidade do National Mall. E um apelo que perpassou muitas mensagens, tanto de oradores quanto nos cartazes, e não só em Washington mas também nas outras cidades, foi para as pessoas não voltarem para casa e continuar a vida como antes. A ideia geral era a de que a posse de Trump deveria ser um estopim para um movimento que já era necessário, com ou sem ele.

“A revolução começa aqui”, discursou a cantora Madonna. “É o início de uma mudança muito necessitada, que vai exigir sacrifício, gente. Mudança que vai exigir de muitos de nós fazermos escolhas diferentes em nossas vidas. Mas essa é a marca da revolução. Então minha pergunta para vocês hoje é: vocês estão prontos?” Um “yeah” ecoou pelo imenso espaço gramado e aberto do Mall, flanqueado pelos memoriais dos “pais fundadores” e pelo Capitólio, a sede do Congresso. Em seguida, Madonna cantou “Express Yourself”, um de seus sucessos do final dos anos 80.

Havia muitas referências à palavra pussy (o equivalente, na gíria, a “vagina”), usada por Trump no terrível vídeo de 2005, no qual ele se vangloria de “agarrar” as mulheres pelo órgão sexual. “Estas pussies querem paz e justiça para todos”, dizia um cartaz, trazendo duas palavras com hashtags: #Revolução e #Pussyriot, o nome de uma banda feminista punk de Moscou, crítica ao presidente Vladimir Putin, que teve duas integrantes presas por quase dois anos, entre 2012 e 2013. Riot significa protesto ou distúrbio.

“Mantenha sua política fora da minha pussy”, pedia um cartaz. “My neck, my back, my pussy, I will grab back” ( “Meu pescoço, minhas costas, minha pussy, vou agarrar de volta”), rimava um outro. “Pussy power”, dizia uma faixa, que lembrava a expressão “black power” (poder dos negros) dos anos 60 e 70, que acabou se tornando um estilo de penteado.

“Somos a resistência”, dizia um cartaz. Outro, com uma foto da princesa Leia, de Guerra nas Estrelas, segurando um fuzil-metralhadora, fazia um jogo com as palavras “resistir” e “irmã”: “Re sister”. O clima de contracultura se tornou mais explícito quando a feminista Gloria Steinem, ícone dos anos 60/70, deu uma instrução calcada em sua experiência: “Não deixem de se apresentar uns aos outros e decidir o que vamos fazer amanhã, e amanhã, e amanhã. Nós nunca vamos recuar”.

Assim como na véspera, na posse de Trump, havia muitos cartazes referindo-se ao movimento Black Lives Matter (“vidas negras importam”), que às vezes se envolve em confrontos com a polícia, em protestos contra a violência policial contra negros. A cantora e atriz negra Janelle Monae trouxe o tema para o palco, pedindo para a multidão gritar o nome de Sandra Bland, enforcada em sua cela no Condado de Waller, no Texas, em 2015.

Um cartaz trazia um texto de Audre Lorde, escritora, feminista, lésbica e ativista de direitos humanos negra de Nova York, que morreu em 1992: “Não sou livre enquanto qualquer mulher não é livre. Mesmo que suas algemas sejam muito diferentes das minhas”.

Um homem de meia idade com uma touca de lã vermelha carregava um cartaz dizendo: “Mulheres, seus direitos e nada menos”, e o nome de Susan B. Anthony , que lutou pela abolição da escravidão e pelo direito das mulheres ao voto.

Moças negras traziam um cartaz que dizia: “Vidas de negros importam. Vidas de mulheres importam também”. Assim, as causas iam se mesclando, da mesma maneira que aconteceu nos 60/70, quando os Panteras Negras, grupo de autodefesa das comunidades negras, integrou-se com a contracultura, embora suas atitudes às vezes violentas destoassem das mensagens pacifistas. Aliás, um cartaz que dizia “Estou tão cansada disso” trazia o símbolo da paz e   amor da contracultura: uma linha vertical cortando um triângulo dentro de um círculo.

Ao feminismo e ao anti-racismo se juntou uma terceira frente, a defesa dos imigrantes, atacados por Trump. Latinas e muçulmanas, entre artistas e militantes, alternaram-se no palanque para defender o multiculturalismo como um traço definidor da identidade americana, num contraponto à visão de parte dos seguidores de Trump, segundo a qual seria preciso “devolver a América aos americanos”, entendidos como brancos. Um cartaz de uma mulher loira dizia: “Eu amo você seja como for e lutarei por você seja como for. E se ele construir um muro, criarei meus filhos para o derrubarem”.

Uma quarta frente, também presente na contracultura, é a defesa do meio ambiente, ameaçado, na visão de muitos críticos do governo Trump, por sua clara opção pelo uso de combustíveis fósseis, que já o levou a desengavetar os projetos de dois oleodutos, arquivados por Obama, para preservar o meio ambiente e o acesso de indígenas a fontes de água. “Eu marcho pela minha filha, as filhas delas e a terra mãe”, dizia um cartaz.

Algumas outras frases que chamaram a minha atenção, que formam o mosaico das motivações do movimento e o conectam, em alguns aspectos, ao espírito dos anos 60/70:

“Não voltarei silenciosamente para os anos 1950”.

“Minha avó marchou pelo direito ao voto, igualdade e respeito. Ela pensou que eu não teria de marchar por isso”.

“Direitos das mulheres são direitos humanos: negro, trabalhador, imigrante, trans, pobre, muçulmano, bicha, nativo, deficiente”.

“Justiça de gênero = justiça racial = justiça econômica”.

“Somos as netas das bruxas que você não conseguiu queimar”.

“Respeite a existência ou espere resistência”.

“Fúria contra a morte da luz”.

No final daquela manhã, peguei um carro em direção a Nova York. No meio do caminho, parei na Filadélfia, o berço da independência e da Constituição americanas. No seu mais importante espaço público, o Parque Benjamin Franklin, 50 mil pessoas se reuniram — como em DC, mais do dobro do esperado pelas organizadoras. Quando cheguei, um coral de cantoras negras, com seu marcante estilo gospel das igrejas do sul, entoava uma canção sobre não desistir do que você é e acredita, que falava diretamente à alma e aquecia o frio daquele início de tarde.

No estilo irreverente dos anos 60/70, uma sobrevivente de câncer de mama chamada Hart enfrentou o frio para se expor diante da multidão e no telão, com o torso nu, exibindo as cicatrizes da retirada dos dois seios. A advogada Sherrie Cohen, da União de Inquilinos, pediu: “Pensem em algo que vocês queiram dedicar a si mesmos. Vamos fazer um momento de silêncio”. Cohen mesmo quebrou em seguida o impressionante silêncio que se fez no amplo espaço do parque, e gritou: “Resistir”, o que a multidão repetiu várias vezes.

Cheguei a Nova York por volta de 16h30, quando muitos manifestantes ainda se aglomeravam na 5.ª Avenida, que reuniu 400 mil pessoas, segundo cálculo da prefeitura. Madonna também se apresentou lá. Muitos oradores propuseram que aquele dia fosse o início de um movimento, como a rabina Sharon Brous: “Só acontece uma vez em uma geração que o espírito de resistência seja despertado. Este é um desses momentos. Nossas crianças nos perguntarão um dia ‘onde você estava quando seu país foi empurrado na caverna do leão da demagogia e da divisão’”.

A contracultura teve uma imponente expressão artística, na música de Janis Joplin, Bob Dylan, Joan Baez, Led Zeppelin, Bob Marley, Jimi Hendrix e tantos outros, assim como na literatura de J.D. Salinger, Charles Bukowski, nas artes plásticas, no cinema. Até aqui, o ícone visível desse novo movimento, se é que ele tomará corpo, é o documentarista Charles Moore, que fez a multidão de Washington repetir o pabx do Congresso até decorar, pedindo para ligarem para lá todos os dias, para pressionar contra as leis que retirem direitos.

Haverá um novo Woodstock, o festival de música e arte de 1969 no Estado de Nova York? Ou ele já acontece, todos os dias, de forma fragmentada, nas redes sociais? Os memes são os novos cartazes e grafites? Os posts são os novos panfletos e murais?

O futuro é, por definição, o desconhecido. Pode ser que esses milhões tenham voltado para casa e se resignado, procurando acostumar-se com o que está se convencionando chamar “o novo normal”: a aceitabilidade social da discriminação, a licença para humilhar quem é diferente, a título de rejeição da “chatice” do politicamente correto.

E o mundo de hoje é infinitamente diferente do dos anos 60. Mas talvez algumas dessas diferenças propiciem mais do que descartem o surgimento de novos movimentos sociais e culturais. A Primavera Árabe, o Ocupe Wall Street, as manifestações na Europa, Turquia e Brasil nos últimos anos se beneficiaram das redes sociais como ferramentas de mobilização.

A investida do conservadorismo americano e europeu contra o direito ao aborto e o casamento de pessoas do mesmo sexo, contra imigrantes e outras minorias, pode suscitar uma reação à altura da explosão em favor da liberdade e da igualdade dos anos 60?

Se as marchas de 21 de janeiro serão fogo de palha ou a faísca de um grande incêndio, é impossível afirmar, hoje, até porque isso dependerá do fôlego do próprio conservadorismo ao qual resistem. Mas a pergunta de um cartaz de uma manifestante de Washington deve ser ao menos ouvida: “E se essa escuridão não for a do túmulo (tomb), mas a do útero (womb)?”

Uma versão resumida deste texto foi publicada no caderno Aliás, do Estadão. Copyright: Estadão. Todos os direitos reservados.

Deixe o seu comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

*