A guerra psicológica anti-Trump

TRUMP EM COLETIVA: “alguém aqui nesta sala acha que Hillary Clinton seria mais dura com Putin do que eu?”/ Shannon Stapleton/ Reuters

Lourival Sant’Anna, de Nova York

Guerra psicológica é uma dessas brigas que se sabe como começa, mas não como termina. Ao longo de anos, Donald Trump se utilizou dessa arma, lançando boatos contra seus oponentes. Agora, o presidente eleito prova de seu próprio veneno. Um venenoso dossiê, que circulava havia meses entre os repórteres, mas que ninguém havia publicado ainda, foi finalmente colocado no ar nesta terça-feira 10 pelo site BuzzFeed News. Segundo o documento apócrifo, cuja veracidade não está confirmada, o FSB, o serviço de inteligência russa, teria provas comprometedoras do comportamento sexual e empresarial de Trump, com as quais o governo russo poderia chantagear o futuro presidente americano.

Na mais picante das passagens, o dossiê cita uma testemunha que teria presenciado a seguinte cena: Trump teria contratado várias prostitutas para urinar, na frente dele, na cama da suíte presidencial do Hotel Ritz Carlton de Moscou, onde o presidente Barack Obama havia dormido com sua mulher, Michelle. Os quartos do hotel são grampeados pelo FSB, que teria gravado o episódio. O texto assinala que as autoridades russas teriam “explorado as obsessões pessoais e a perversão sexual de Trump para obter um ‘kompromat’ (palavra russa para ‘material comprometedor’) sobre ele”.

De acordo com o Buzzfeed, o dossiê teria sido elaborado por uma pessoa que diz ser ex-agente do serviço secreto britânico. O detalhe é interessante, porque, segundo a CIA, o MI6, a agência de espionagem britânica no exterior, foi a primeira a alertar a comunidade de inteligência americana para tentativas dos espiões e hackers russos de penetrar nas redes do sistema eleitoral dos EUA e do Partido Democrata.

Datado de 20 de junho de 2016, o texto anônimo afirma ainda que “as autoridades russas têm estado cultivando e apoiando” Trump há pelo menos cinco anos. E acrescenta que o dossiê com as informações sobre o então candidato republicano é “controlado pelo porta-voz do Kremlin, (Dmitry) Peskov, diretamente sob ordens de (Vladimir) Putin”, que fez carreira na antiga KGB e na sua sucessora, FSB, antes de se tornar o homem forte da Rússia, a partir de 2000.

O documento afirma, ainda, que “o Kremlin tem estado alimentando Trump e sua equipe por vários anos com valiosas informações sobre seus oponentes”, incluindo a então candidata democrata, Hillary Clinton. E que “a operação de cultivo de Trump também tem incluído oferecer-lhe vários negócios lucrativos no ramo imobiliário na Rússia, especialmente em relação à Copa do Mundo de 2018”. Entretanto, ressalva, o dossiê, “por razões desconhecidas, Trump não aceitou nenhum deles”. A ressalva trai, em grande medida, a natureza maldosa do dossiê, de espalhar o máximo de intrigas, sem fatos que as comprovem.

Trump reagiu injuriado no Twitter: “Um último tiro em mim. Estamos vivendo na Alemanha nazista?”, perguntou, referindo-se à máquina de distribuição de mentiras do então ministro alemão da Propaganda, Joseph Goebbels. E garantiu, com letras maiúsculas: “Nenhum contrato, nenhum empréstimo, nada!”

Mais tarde, na sua primeira entrevista coletiva como presidente eleito, na manhã desta quarta-feira, Trump reconheceu pela primeira vez que os russos estão por trás da invasão dos bancos de dados do Partido Democrata e do vazamento de emails da equipe de campanha de sua adversária, Hillary Clinton. Entretanto, ele negou que o objetivo do governo russo fosse beneficiá-lo na eleição.

Trump se reuniu na sexta-feira 6 com os diretores da Agência Nacional de Inteligência, da CIA e do FBI, que lhe mostraram as evidências de que dispõem do envolvimento do governo russo nessa operação que, na visão dos democratas, contribuiu para a derrota de Hillary e teve como objetivo pôr em xeque a democracia americana, já que os ataques atingiram também computadores do sistema de votação. Na véspera, os diretores haviam apresentado esses dados ao presidente Barack Obama. Segundo a rede de TV CNN, nessas ocasiões, os diretores também entregaram o dossiê apócrifo a ambos. A emissora noticiou também que o senador republicano John McCain, desafeto de Trump, entregou uma cópia do dossiê ao diretor do FBI, James Comey, no dia 9 (mesmo dia da reunião com Obama), mas ele já o possuía.

O site BuzzFeed afirma que seus repórteres nos EUA e na Europa investigaram as informações contidas no dossiê e não chegaram à conclusão sobre se são falsas ou verdadeiras, mas seus editores decidiram publicá-lo na íntegra “para que os americanos possam tomar uma posição sobre alegações acerca do presidente eleito que têm circulado nos níveis mais altos do governo”.

Trump foi o responsável pela versão de que Obama não teria nascido nos EUA e seria muçulmano, que perseguiu o presidente ao longo de seus dois mandatos, até que o republicano finalmente reconheceu, em setembro, que isso não era verdadeiro. Em sua entrevista coletiva anterior, em julho, ele havia insinuado, em tom de brincadeira, uma convergência de interesses com os espiões russos, ao se referir aos emails de Hillary que segundo o FBI teriam sido apagados: “Rússia, se estiver escutando, espero que você consiga encontrar os 30 mil emails que estão faltando. Acho que vocês provavelmente serão poderosamente recompensados pela imprensa”.

Além disso, Trump manifestou várias vezes admiração por Putin. Apoiou a anexação da Crimeia pela Rússia, em 2014, afirmando que se tratava do desejo dos russos étnicos que vivem na península antes pertencente à Ucrânia. Ameaçou não sair em defesa dos países do Leste Europeu aliados dos EUA na Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), em caso de agressão russa, se eles não pagassem pelo custo da operação militar. E teve como coordenador de sua campanha o marqueteiro Paul Manafort (substituído em agosto), que fizera trabalhos para políticos na Ucrânia apoiados pela Rússia.

Na coletiva desta quarta-feira, Trump, que assume a presidência no dia 20, declarou: “Se o Putin gosta de Donald Trump, adivinhe, pessoal, isso é um ativo, não uma vulnerabilidade. Não sei se vou me dar bem com Vladi­mir Putin, mas, se eu não me der, alguém aqui nesta sala acha que Hillary Clinton seria mais dura com Putin do que eu? Ah, me dêem um tempo”. É melhor Trump não contar com isso: a imprensa não vai lhe dar um tempo.

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