Imigração: Trump vs. CEOs

Ao anunciar o fim de um decreto que beneficia 740.000 jovens imigrantes, o milionário presidente bate de frente com a elite empresarial do país, e volta a expor suas ambiguidades

DACA: fim do programa foi criticado por CEOs de empresas como Apple, Uber, Facebook e JP Morgan | REUTERS/ Kevin Lamarque

Depois de ver seus dois decretos contra imigração barrados na Justiça e a construção do muro na fronteira com o México sem apoio no Congresso, o presidente Donald Trump abriu uma nova frente nesse que foi um dos principais motes de sua campanha. O secretário da Justiça, Jeff Sessions, anunciou na terça-feira 5 a revogação da Ação Protelada para Chegadas na Infância (Daca), programa criado por decreto em 2012 pelo então presidente Barack Obama, que permitiu a imigrantes ilegais que cresceram nos EUA regularizar sua situação.

De acordo com o Censo americano, o programa beneficia 740.000 pessoas. Suas condições são: ter chegado aos EUA com menos de 16 anos e passado no mínimo 5 no país; idade máxima de 31 anos até 31 de junho de 2012; conclusão do ensino médio ou equivalente; não ter cometido crimes graves. Parte da base eleitoral de Trump é formada por trabalhadores brancos de baixa instrução e seus familiares, que acreditam ter perdido seus empregos na indústria para os imigrantes e para o livre comércio — quando os estudos mostram que a real causa são as mudanças tecnológicas. Em um universo de 150 milhões de trabalhadores, os 740.000 representam pouco, mas setores como saúde, construção civil e educação sofrerão com a expulsão desses imigrantes.

Levantamento feito pela FWD.us, entidade pró-imigração fundada por Mark Zuckerberg, CEO do Facebook, 91% dos beneficiados pelo Daca estão empregados. O cancelamento do programa levaria à saída do mercado de trabalho de 30.000 desses trabalhadores por mês, à medida que seus vistos fossem expirando.

Zuckerberg fez uma entrevista ao vivo na quarta-feira 6 por meio de sua página no Facebook com três beneficiários do programa — uma peruana, uma mexicana e um canadense — em sua casa em Palo Alto (Califórnia). Os três contaram suas histórias, desde que seus pais os trouxeram para os EUA. Mais de 1,1 milhão de pessoas assistiram a entrevista ao vivo.

O CEO do Facebook disse que há nos EUA 2 milhões de “sonhadores”, como são chamadas as pessoas com direito ao Daca, e exortou os congressistas a “demonstrarem que podem liderar”, legalizando definitivamente a permanência deles.

“É particularmente cruel oferecer o sonho americano a jovens, incentivá-los a sair das sombras e confiar no nosso governo, e depois puni-los por isso”, declarou Zuckerberg, bisneto de judeus alemães e casado com uma descendente de chineses.

Outros importantes dirigentes empresariais foram na mesma linha. “Imigração é uma questão complexa, mas eu não deportaria um jovem trazido para cá e que só conhece a América”, disse Lloyd Blankfein, presidente do grupo financeiro Goldman Sachs. Já Tim Cook, CEO da Apple, afirmou que a companhia emprega 250 “sonhadores”. “Eu os apoio”, declarou Cook. “Eles merecem nosso respeito como iguais e uma solução alicerçada nos valores americanos.”

Bob Iger, CEO da Walt Disney Co., chamou a revogação do Daca de “cruel e equivocada”: “Os sonhadores contribuem com a nossa economia e nossa nação. O Congresso precisa agir depressa para protegê-los”.

Jamie Dimon, CEO do banco de investimentos JPMorgan Chase, também foi enfático: “A América é e sempre foi um país de imigrantes. Deveríamos fazer de tudo a nosso alcance para continuar a atrair os melhores e mais brilhantes porque eles nos tornam mais fortes como povo e como economia. Quando as pessoas vêm aprender, trabalhar duro e devolver para suas comunidades, deveríamos permitir que eles ficassem nos EUA”.

O novo CEO da Uber, Dara Khosrowshahi, que o diga. Nascido no Irã, numa família dona de um grande conglomerado industrial, que teve as empresas nacionalizadas com a Revolução Islâmica de 1979, ele tuitou: “É contra nossos valores dar as costas aos #DREAMers (sonhadores)”.

É irônico que o bilionário presidente, eleito com base na promessa de trazer uma cultura empresarial para a gestão do país, bata de frente com os dirigentes de algumas das empresas mais dinâmicas dos EUA. E não é a primeira vez. Depois de sua reação ambígua aos conflitos causados pela marcha nazista na Virgínia no mês passado, em que responsabilizou “vários lados” pela violência, Trump foi obrigado a dissolver o conselho empresarial que havia criado, diante da debandada de CEOs.

A ambiguidade também é uma marca da posição de Trump em relação ao próprio Daca. “Tenho amor por essas pessoas e espero que o Congresso possa agora ajudá-las de forma apropriada”, declarou o presidente na tarde de terça-feira, depois de se reunir com líderes da bancada republicana no Congresso. “E posso lhes dizer, falando com membros do Congresso, que eles querem fazer algo e fazer certo. E realmente não temos escolha.”

A leitura do governo é a de que o programa não poderia ter sido instituído por decreto presidencial. Pela noite, Trump tuitou: “O Congresso tem agora seis meses para legalizar o Daca (algo que o governo Obama foi incapaz de fazer). Se eles não o fizerem, eu revisitarei a questão”.

No anúncio pela manhã, o secretário de Justiça tinha sido bem mais contundente: “Não podemos admitir todo mundo que gostaria de vir para cá. É simples assim”. Mas parece que, politicamente, não é tão simples assim. Há décadas o Congresso americano tenta criar uma legislação sobre imigração, mas esbarra nos múltiplos interesses e emoções envolvidas. Enviar a questão para o Congresso debater é o equivalente a protelar sua solução.

A ideia de uma revisão do Daca, colocada em aberto dessa forma, deixou republicanos anti-imigração de cabelo em pé. “Temos de reconhecer que haverá duas consequências negativas dessa ação”, disse o senador Tom Cotton, do Arkansas. “Uma, criamos uma nova oportunidade de cidadania em cadeia para os pais deles, justamente as pessoas que violaram a lei trazendo-os como crianças. E, duas, encorajamos outras pessoas ao redor do mundo a trazer seus filhos aqui ilegalmente”.

 

Os democratas na berlinda 

Do outro lado do espectro político, os olhares se voltaram para os cinco senadores democratas que não votaram a favor da chamada Lei do Sonho, depois que ela fora aprovada pela Câmara dos Deputados em 2010. Sua rejeição pelo Senado forçou Obama a instituir o programa por decreto, o que criou essa insegurança jurídica.

Dos cinco, o senador Jon Tester, do Estado de Montana, é o único que permanece no Senado. Ele justificou assim sua posição, em 2010: “A imigração ilegal é um problema crítico enfrentado pelo nosso país, mas anistia não é a solução”.

Assim como em outras partes do mundo, em especial na Europa, o tema imigração é repleto de mal-entendidos, desinformação e exploração política. Em artigo publicado na quinta-feira no jornal The Washington Post, David Bier, especialista no tema, desfaz cinco mitos a esse respeito. Bier trabalha para o Cato Institute, que defende menor participação do Estado na economia — e portanto não se pode acusar de ser “de esquerda”.

O primeiro mito é o de que o Daca aumentou a imigração ilegal, como afirma, por exemplo, o presidente da Comissão do Judiciário na Câmara dos Deputados, o republicano Bob Goodlatte, da Virgínia. Pelas regras, ninguém que entrasse ilegalmente depois de 15 de junho de 2007 poderia ser beneficiado pelo programa lançado em 2012, argumenta o especialista.

Poderia ser argumentado que o programa estimulou o aumento registrado em 2012 na entrada de crianças. Entretanto, segundo dados da Patrulha de Fronteira, esse aumento ocorreu inteiramente nos meses anteriores ao decreto de Obama.

Bier lembra que, antes do primeiro programa de legalização de imigrantes, em 1986, cada agente de fronteira detinha em média mais de 40 pessoas tentando atravessar ilegalmente por mês. Desde então, as tentativas nunca atingiram esse patamar. No ano passado, foram menos de duas por mês.

Ao anunciar sua revogação, o secretário da Justiça afirmou que o Daca “tirou empregos de centenas de milhares de americanos, ao permitir que essas vagas fossem para estrangeiros ilegais”. Outro mito, segundo Bier, baseado na falsa suposição de que o número de vagas da economia é fixo, e que o aumento da força de trabalho resulta em desemprego.

O número de trabalhadores nos EUA duplicou entre 1970 e 2017, mas em vez de o desemprego aumentar 50%, a oferta de emprego também duplicou, acompanhando o aumento da mão-de-obra disponível. Até porque, recorda o especialista, esses trabalhadores também consomem. “Essa é uma das razões pelas quais esforços anteriores de restringir a imigração não produziram ganhos salariais.”

O secretário Jeff Sessions também afirmou que o fim do Daca “protege os contribuintes”. Estudo da Academia Nacional de Ciências (NAS) mostrou que os imigrantes que chegaram aos EUA como crianças, incluindo os beneficiários do programa, pagam, em média, ao longo de suas vidas, mais impostos do que os benefícios que recebem, independentemente de seu nível educacional. Isso porque eles não têm direito aos programas federais de transferência de renda e de assistência de saúde, entre outros, que exigem comprovação de renda.

Além disso, os beneficiários do Daca têm nível de instrução mais alto do que o imigrante médio, já que o programa impõe como pré-requisito o certificado do ensino médio. Bier diz que 36% dos participantes do Daca com idade de 25 anos ou mais têm diploma de graduação, e outros 32% estão estudando para isso.

Ainda segundo o levantamento da Academia, entre os imigrantes que entraram no país na infância, aqueles que concluíram o ensino médio contribuem com impostos de 60.000 a 153.000 dólares a mais do que recebem em serviços do governo; já entre os que têm diploma superior, essa diferença sobe para 160.000 a 316.000 dólares a mais. “Cada visto do Daca cancelado é como queimar dezenas de milhares de dólares em Washington”, conclui Bier.

O quarto mito, também defendido por Sessions, é o de que a revogação do Daca “salva vidas e protege comunidades”, já que o programa “expõe nossa nação ao risco dos crimes”. O especialista afirma, no entanto, que estatisticamente imigrantes ilegais são muito menos presos do que os cidadãos americanos. Sem contar que uma das condições do programa é não ter cometido crimes graves.

O especialista diz que, dos 740.000 beneficiários do programa, apenas 2.139 perderam seus vistos por causa de crimes ou outras ações que colocam em risco a segurança pública. Ou seja, menos de 0,3%. A proporção de cidadãos nascidos nos EUA que estão presos é quatro vezes maior; e daqueles com idade até 34 anos, 35 vezes.

O quinto erro, segundo Bier, é acreditar que a revogação do Daca foi uma “uma decisão política, não uma exigência legal”, como afirmou Obama. Vários governos estaduais ameaçaram entrar com ações na Justiça se Trump não revogasse o Daca até o dia 5, terça-feira. “Se o presidente Trump quisesse pôr fim ao Daca por razões políticas, poderia ter feito isso no seu primeiro dia no cargo”, analisa Bier.

Obama tentou em 2015 ampliar o Daca para pais de cidadãos americanos que estão ilegalmente nos EUA, mas a Justiça o impediu, lembra o especialista. Como o programa não foi aprovado pelo Congresso, também seria barrado se enfrentasse as ações dos governos estaduais. Daí a iniciativa de Trump de submeter a questão ao Congresso.

“A resposta correta, entretanto — por razões econômicas e de segurança, mas acima de tudo morais —, teria sido pressionar o Congresso ativamente a legalizar o programa, não anunciar seu encerramento e esperar para ver o que acontece”, considera Bier.

A essa altura, talvez Trump já sinta que não está precisando comprar novas brigas.

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