Kim, o nanico, encolheu

DESFILE MILITAR: Kim se limitou, no sábado a exibir seu arsenal de em PyonGyang/ Sue-Lion Wong/ Reuters

Parecia que a principal data do calendário da ditadura norte-coreana tinha transcorrido sem maiores provocações. E teria sido melhor assim, do ponto de vista de seu líder, Kim Jong-un. Às 4h41 da manhã deste domingo em Pyongyang (17h11 de sábado em Brasília), os norte-coreanos dispararam um míssil, que em seguida explodiu, segundo o Comando do Pacífico dos Estados Unidos. O disparo ocorreu perto da base de submarinos norte-coreana de Sinpo. O tipo de míssil empregado não foi imediatamente identificado.

O fiasco representa um golpe no prestígio de Jong-un, nas comemorações dos 105 anos de nascimento de seu avô, Kim Il-sung, o fundador da dinastia comunista. Normalmente, a data, que caiu neste sábado, é celebrada com uma demonstração de força. Imagens de satélite mostraram uma movimentação nos últimos dias na instalação nuclear de Punggye-ri, o que levou à suspeita de que se faziam preparativos para o sexto teste nuclear do país desde 2006. Entretanto, no sábado, a Coreia do Norte se limitou a exibir seu arsenal, em um desfile militar.

Aparentemente um dos mísseis em exibição era o intercontinental KN-08, que pode ter um alcance de 12 mil km, suficientes para atingir todo o território americano. Além disso, o desfile na Praça Kim Il-Sung contou com mísseis lançados de submarinos, testados com sucesso no ano passado, assim como sua versão terrestre, disparada em março. Caminhões de fabricação chinesa transportavam dois cilindros para mísseis intercontinentais, que protegem combustível sólido do impacto do meio ambiente. O combustível sólido aumenta a prontidão dos mísseis e evita sua detecção por satélites, porque, ao contrário do líquido, não precisam ser abastecidos antes do disparo.

Perto dali, uma esquadra americana despachada no início da semana, composta pelo porta-aviões Carl Vinson, dois destróieres munidos com mísseis Tomahawk e submarinos, além de bombardeiros pesados estacionados na Ilha de Guam, aguardavam para retaliar, caso os norte-coreanos detonassem mais uma ogiva nuclear ou realizassem seu sétimo teste com mísseis convencionais desde 1993.

“Iremos à guerra se eles quiserem”, disse o vice-chanceler norte-coreano Han Song Ryol, em entrevista à Associated Press. “Nós vamos dar conta do que quer que venha dos EUA. Estamos totalmente preparados para lidar. Já temos uma poderosa força dissuasiva nuclear em nossas mãos, e certamente não vamos ficar de braços cruzados diante de um ataque preventivo dos EUA.”

Na segunda-feira, um porta-voz da chancelaria em Pyongyang havia dito que, “se os EUA ousarem optar por uma ação militar, com um ataque preventivo, a DPRK (República Democrática Popular da Coreia) está pronta para reagir a qualquer tipo de guerra desejado pelos EUA”.

Num comunicado, o Exército norte-coreano ameaçou aniquilar as bases dos EUA na Coreia do Sul — onde estão 28.500 militares americanos — e o palácio presidencial em Seul (no momento à espera de um novo inquilino, a ser definido na eleição de 9 de maio, depois da destituição da presidente Park Geun-hye no mês passado), em reação às “provocações militares maníacas” de Trump.

Pressionada pelo presidente americano, a China, que sustenta economicamente o regime de Pyongyang, havia advertido tanto os EUA quanto a Coreia do Norte para os riscos de uma guerra. Notícias de deslocamento de 150 mil militares chineses para a fronteira, no entanto, não foram confirmadas nem pela China nem pelos EUA. Nem seria necessário: o Exército de Libertação do Povo, o maior do mundo, já mantém rotineiramente 250 mil militares nessa região nordeste do país.

O vice-presidente Mike Pence chega neste domingo a Seul, primeira etapa de uma viagem pela Ásia, para reforçar o compromisso dos EUA com a defesa da Coreia do Sul e do Japão, e com o objetivo de interromper o programa nuclear norte-coreano.

A China pediu cautela. “Os Estados Unidos, as Coreias do Sul e do Norte se engajaram num bate-boca, desembainharam as espadas e esticaram os arcos”, disse o chanceler chinês, Wang Yi, em entrevista coletiva na sexta-feira. “Apelamos a todas as partes para evitar declarações inflamatórias ou atos ameaçadores para prevenir dano irreversível na situação na Península Coreana.” Mais tarde, Wang telefonou para o chanceler russo, Serguei Lavrov e, segundo uma nota do ministério em Pequim, disse ao colega que “a China aprova uma colaboração estreita com a Rússia para esfriar a situação na Península Coreana o mais depressa possível e encorajar as partes envolvidas a retomar o diálogo”.

Tanto a China quanto a Rússia fazem fronteira com a Coreia do Norte. A ocupação do norte da península pela União Soviética e do sul pelos EUA, no fim da 2.ª Guerra Mundial, em 1945, levou à divisão. Com o fim da URSS em 1991, a China substituiu os russos como principal aliada da Coreia do Norte. Nenhum dos dois tem interesse no fim do regime comunista e na unificação da península, que fatalmente levaria ao seu domínio pela Coreia do Sul, aliada dos EUA.

O envolvimento chinês nos programas armamentistas da Coreia do Norte ficou claro em fevereiro do ano passado, quando o país lançou o satélite Kwangmyongsong-4. Partes do foguete usado no lançamento caíram no Mar Amarelo e foram recolhidas pela Marinha sul-coreana. Técnicos analisaram o material e constataram que componentes-chave foram fornecidos por empresas chinesas.Entretanto, desde o primeiro telefonema entre Trump e o presidente Xi Jinping, no dia 9 de fevereiro, teve início um processo de negociações amplo, que inclui comércio e segurança, e já vem dando resultados concretos. Naquela conversa, Trump aderiu à política de uma China, que implica o não-reconhecimento de Taiwan. Essa adesão tinha sido colocada em dúvida pela conversa que ele tivera pelo telefone no dia 2 de dezembro com a presidente de Taiwan, Tsai Ing-wen.

Em retribuição, a China suspendeu as importações de carvão da Coreia do Norte, a principal fonte de moeda forte do país. Nos dias dias 6 e 7, os dois se reuniram em Mar-a-Lago, o balneário de Trump na Flórida. A Coreia do Norte voltou a ser discutida. Trump usou o encontro para lançar, na noite de quinta-feira, o ataque contra a base aérea síria de Shayrat. Comunicou o ataque a Xi enquanto comia com ele de sobremesa “a mais bonita fatia de torta de chocolate”.

Era o recado de que o presidente americano estava pronto para usar a força para impor seus interesses. Recado que voltou a ser dado com o envio da esquadra para a costa da Península Coreana e com o disparo, pela primeira vez, da “mãe de todas as bombas”, de 11 toneladas, contra um alvo do Estado Islâmico no Afeganistão.

Assim como na Síria, o ataque ao Afeganistão teve como alvo também a Rússia. Os EUA estão preocupados com a crescente influência russa no território afegão, ocupado pela União Soviética entre 1979 e 1989, quando foi derrotada pelos mujahedin, combatentes islâmicos vindos de todas as partes do mundo muçulmano para lutar essa jihad.

O comandante militar americano na Europa e na Otan, general Curtis Scaparrotti, disse no dia 23 de março, em depoimento no Comitê de Defesa do Senado: “Tenho visto ultimamente a influência da Rússia crescer em termos de associação e até de suprimentos para o Taleban”. Ele não especificou que tipo de material a Rússia estaria fornecendo aos insurgentes islâmicos no Afeganistão.

Na cúpula dos dias 6 e 7 (sexta e sábado), Trump e Xi definiram como objetivo comum a desnuclearização da Península da Coreia. A partir daí houve uma sucessão diária de desdobramentos. Na segunda-feira 10, representantes dos governos chinês e sul-coreano acertaram em Seul que os dois países imporiam sanções econômicas contra a Coreia do Norte se ela realizasse novo teste nuclear ou com mísseis.

No dia seguinte, o jornal Global Times, que expressa as visões do Partido Comunista Chinês, afirmou que a China deveria suspender a exportação de petróleo para a Coreia do Norte em caso de novo teste nuclear. No mesmo dia, terça-feira, Trump tuitou: “Eu expliquei ao presidente da China que um acordo comercial com os EUA será muito melhor se eles resolverem o problema norte-coreano! A Coreia do Norte está atrás de problema. Se a China decidir ajudar, isso seria ótimo. Se não, resolveremos o problema sem eles!” E assinou: “U.S.A.”

Na quarta, Trump declarou que já não considerava mais a China manipuladora de câmbio, uma acusação que poderia levar a retaliações comerciais, e que o presidente havia reiterado apenas uma semana antes, em entrevista ao Financial Times. No mesmo dia, a China se absteve na votação de resolução do Conselho de Segurança da ONU condenando a Síria pelo ataque do dia 4 com gás sarin. Em seis votações anteriores, a China havia vetado resoluções contra a Síria, em apoio à Rússia (que também vetou essa última).

Esse conjunto de fatos e o recuo de Pyongyang significam que Trump tomou a iniciativa. Antes, os EUA apenas reagiam aos testes nucleares e com mísseis norte-coreanos. “Essa abordagem é relativamente nova”, analisa James Kim, do Instituto Asan de Estudos de Políticas, de Seul. “No passado, a abordagem foi muito calculada. Sempre soubemos que todas essas opções (militares) estavam disponíveis, mas ninguém era suficientemente ousado para seguir por esse caminho.”

Agora, observa Kim, Trump está na posição de dizer: “Se vocês querem um navio de guerra a menos na região, o que vão me dar em troca?” Antes, era a Coreia do Norte que usava seu programa nuclear para obter concessões, como foi o caso do acordo com os EUA de 1994, pelo qual ela congelava seu programa nuclear em troca de dois reatores para geração de energia. A construção dos reatores foi interrompida em 2003, por causa da continuação do programa de enriquecimento de urânio norte-coreano.

Houve também o acordo de 2003 com a Coreia do Sul para criar o Parque Industrial Kaesong, na fronteira, que chegou a empregar 100 mil norte-coreanos em 2007. Apresidente Park Geun-hye suspendeu o acordo em fevereiro do ano passado, quando havia 53 mil trabalhadores norte-coreanos no complexo, depois do lançamento do foguete e de um teste com bomba de hidrogênio.

A mudança foi observada também em Pequim. “Deve ser notado que há uma diferença de personalidade entre Trump e (o ex-presidente Barack) Obama”, afirmou o Global Times na sexta-feira.

Trump ganhou o primeiro round. Mas Kim Jong-un prosseguirá na sua luta errática pela sobrevivência de si mesmo e de seu regime. Oportunidades não faltarão para ele testar os nervos de Trump, se quiser. Dia 25, por exemplo, o país comemora os 85 anos da criação do Exército Popular Coreano. Então se saberá se o fiasco deste sábado o deixou mais cauteloso ou mais carente de auto-afirmação.

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