O frágil trust de Donald Trump

TRUMP TOWER: o contribuinte tem que pagar pelo aumento na segurança nos empreendimentos do novo presidente/ Mike Segar/ Reuters

Lourival Sant’Anna, de Nova York

Donald Trump ainda nem assumiu, mas os americanos já lhe devem 2 bilhões de dólares, o valor de um negócio que ele afirma ter recusado em Dubai, para evitar conflito de interesse com sua nova condição de presidente. A alegação resume sua postura sobre o tema: que ele está se sacrificando e fazendo mais do que a lei prevê — já que ela não prevê nada — ao passar o comando de sua empresa para um trust controlado por seus dois filhos homens adultos, Don e Eric, sob a supervisão de Allen Weisselberg, há muito tempo seu diretor financeiro. Especialistas no tema, no entanto, vêem nesse arranjo imensos riscos de conflitos de interesse e a criação de um clima de desconfiança que contaminará as decisões do futuro presidente.

Durante entrevista coletiva na quarta-feira em Nova York — a primeira desde julho —, Trump e seus advogados expuseram seu plano de blindagem da presidência com relação a seus tentaculares e bilionários negócios. Segundo eles, a gestão da Organização Trump passará a um trust — o termo celebrizado por Eduardo Cunha no Brasil, para explicar como ao mesmo tempo tinha e não tinha 5 milhões de dólares na Suíça — controlado pelos filhos.

“O presidente eleito quer que não haja nenhuma dúvida na cabeça do público americano de que ele está se isolando completamente dos interesses de seus negócios”, disse a advogada Sheri Dillon, do escritório de advocacia Morgan, Lewis & Bockius, da Filadélfia, que elaborou o esquema. “Ele nos instruiu a tomar todas as medidas realisticamente possíveis para deixar claro que ele não está explorando o gabinete presidencial em benefício pessoal.”

O esquema permitirá ao presidente receber informação limitada sobre a companhia. Num dos detalhes mais canhestros do arranjo, eles explicaram que um consultor de ética se encarregará de garantir que, nos contatos entre filhos e pai, não se tratarão dos assuntos das empresas. Imagine a situação concreta: o empregado de uma empresa familiar vigiando para que seus patrões não falem de negócios nas refeições, a portas fechadas, na piscina, no campo de golfe, no avião, no iate, etc.

Outra situação complexa: Trump promete doar ao Tesouro americano lucros advindos de pagamentos de governos estrangeiros. Então, por exemplo, se um funcionário de um governo de outro país se hospeda em um de seus hotéis, ele devolverá o lucro — não a diária inteira paga.

A esta altura, o leitor pode estar se perguntando: mas o que Trump pode fazer, se é empresário e foi eleito presidente? A solução dada pelo diretor do Escritório de Ética do Governo, Walter Schaub (nomeado por Barack Obama), pode soar um pouco desconcertante, para quem não tem intimidade com a área, ou está acostumado com a maneira de se fazer as coisas no Brasil: Trump deveria vender suas empresas.

“É importante entender que o presidente está entrando agora no mundo do serviço público”, analisa Schaub. “Ele pedirá a seus próprios nomeados para fazerem sacrifícios. Vai pedir a nossos homens e mulheres fardados para arriscar suas vidas em conflitos ao redor do mundo. Portanto, não acho que a alienação (desfazer-se dos bens) seja um preço alto demais para ser presidente dos Estados Unidos da América.”

Na coletiva de quarta-feira, Trump deixou claro que vê as coisas pelo lado inverso: afastar-se dos seus negócios — e abrir mão daqueles que envolvem outros países, como no caso do empreendimento em Dubai — já é um grande sacrifício para ele. “Eu poderia na verdade comandar meus negócios e o governo ao mesmo tempo”, disse o presidente eleito. “Não gosto dessa ideia, mas mas eu poderia, se quisesse.”

Trump e seus advogados se apoiam no fato de que a lei não prevê restrições a conflitos de interesse para presidentes, como faz para os demais funcionários do governo. Incidentalmente, ele reafirmou que não vai entregar sua declaração de imposto de renda antes da posse no dia 20, como a lei obriga que seus secretários e diretores de órgãos federais façam, porque isso igualmente não se aplica ao presidente. É “apenas” uma tradição seguida por seus antecessores. Na coletiva, Trump argumentou que esse assunto só interessa aos jornalistas, e não aos eleitores, como ficou provado com sua eleição.

Schaub, no entanto, explica que a intenção do legislador não foi essa, ao afirmar que “o presidente não pode ter” conflitos de interesse: “O Congresso entendeu que o presidente não pode se declarar impedido sem privar o povo americano dos serviços de seu líder. É por isso que a lei não se aplica ao presidente. Mas o bom senso indica que o presidente pode, obviamente, ter conflitos de interesse muito reais”.

Ou seja, a lei pressupõe que o presidente, antes da posse, já se despojaria, de antemão, de todos os negócios que o pudessem colocar numa situação de conflito de interesse, já que, depois, não tem como se declarar impedido de lidar com uma questão por conflito de interesse, como faz um juiz em um processo. Juízes e outros funcionários podem ser substituídos numa tarefa específica; presidentes, não.

Em artigo no site The Fiscal Times, o jurista Rob Garver enumera quatro aspectos que tornam o governo Trump e os EUA vulneráveis pelo fato de ele continuar proprietário de sua companhia. O primeiro deles é que ele será acusado de tomar decisões de governo para favorecer clientes de suas empresas, o que os americanos chamam de “pay-to-play” — exatamente o que Trump disse de Hillary Clinton, quando vazaram emails de seus assessores, que sugeriam que doadores da Fundação Clinton tinham trânsito no Departamento de Estado sob sua gestão (2009-2013).

Garver considera insuficiente o plano de Trump de doar ao Tesouro todos os lucros do dinheiro gasto por governos estrangeiros em suas propriedades. “Sem falar do pesadelo contábil de tal plano, isso ainda não atende às preocupações de que governos estrangeiros, sem contar empresas nacionais e estrangeiras, grupos de interesse e qualquer um com negócios com o governo federal, vão ou se sentir atraídos a ser clientes das propriedades de Trump ou o farão num esforço para cair nas graças de sua administração”, analisa Garver.

“Também não resolve a questão do prestígio que a Organização Trump ganhará se se tornar a marca preferida de diplomatas estrangeiros”, continua o especialista. “O resultado final poderiam ser decisões tomadas pelo governo Trump que favorecem seus clientes e não os interesses nacionais americanos.”

A segunda questão é o interesse dos negócios de Trump — que abrangem o mercado imobiliário, turismo e entretenimento — nas decisões regulatórias. “A Organização Trump continuará a lucrar com múltiplos alvarás e contratos de licenças nos Estados Unidos, todos sob a supervisão de órgãos do Poder Executivo”, observa Garver. “Isso significa que todos os funcionários federais, de fiscal da Receita a inspetor de segurança do trabalho, que lidarem com uma propriedade de Trump saberão que suas decisões afetarão seu chefe mais alto.”

O jurista alerta que essa hiper-sensibilidade se estenderá também aos governos estaduais: “Não é difícil imaginar que um governador que esteja pleiteando mais empréstimos do governo federal poderá fazer as agências reguladoras estaduais pegarem leve com os empreendimentos do presidente”.

Garver acha que o favoritismo pode contaminar também o Judiciário. “O número de vezes em que Trump e suas empresas foram processados por credores, clientes e empregados furiosos é lendário”, diz ele. Alguns desses processos foram abertos em tribunais federais, como um contra a extinta Universidade Trump, acusada de “fraude” em seus cursos online, por não ensinar o que havia sido prometido, segundo 6 mil alunos que participaram da ação coletiva.

Além disso, lembra o especialista, o próprio Departamento de Justiça, que agora estará submetido diretamente a Trump, já entrou com ações contra suas empresas. “Numa era em que os procuradores federais devem seus empregos ao governo Trump, críticos poderiam imaginar se quaisquer violações a partir de agora seriam tratadas com o mesmo nível de seriedade e imparcialidade”, adverte o especialista.

Por último, Garver aponta os custos com segurança: Trump tende a colocar seu nome em todos os seus empreendimentos, não só nos EUA, mas ao redor do mundo. E cada um deles pode agora se tornar um potencial alvo terrorista. “O contribuinte americano já está pagando a conta pela segurança reforçada na Trump Tower em Manhattan”, observa o jurista.  “À medida em que essa e outras propriedades comerciais também exigirem proteção adicional, os críticos poderão perguntar se a Organização Trump não está se beneficiando do seu status de presidente.”

Garver conclui: “Com exceção dos advogados que ele contratou para construí-lo, é difícil encontrar experts em ética governamental que acreditam que o plano do presidente eleito para se distanciar da gestão da Organização Trump enquanto se mantém proprietário é suficiente para eliinar as preocupações de conflitos de interesse”.

Richard Painter, que foi chefe da equipe de ética do governo republicano de George Bush filho, avalia que Trump “continua com todos os conflitos de interesse que tinha antes” de anunciar seu plano de desligamento de suas empresas. “Não sabemos quem são os sócios dele, nem a quem ele deve”, alerta Painter, professor de direito na Universidade de Harvard. “Espero que não haja um ataque terrorista em nenhum prédio que tenha o nome dele. Espero que não haja uma crise internacional em um país onde ele tenha um monte de dinheiro investido.” Se a Turquia e a Rússia entram em guerra, por exemplo, será que Trump não vai ficar pensando: “E o meu hotel?”, pergunta o jurista.

Para Scott Amey, da organização Projeto de Supervisão do Governo, “havia outras formas de resolver esses conflitos de interesse, mas parece que houve falta de vontade mais do que qualquer outra coisa”. Segundo Amey, manter a propriedade das empresas vai expor Trump a “controvérsias e litígios que durarão todo o seu mandato”. Ele pergunta: “Quem não vai querer processar as empresas de Trump e arrastá-lo para ser citado como testemunha?”

Norman Eisen, que atuou como advogado na equipe de Obama, afirma que o esquema adotado por Trump vai “precipitar escândalos e corrupção”, e avisa: “Eu e muitos outros responderemos fortemente em defesa da ética e da nossa Constituição”.  Na avaliação do deputado democrata Elijah Cummings, membro do Comitê da Câmara de Supervisão e Reforma do Governo, Trump “arrisca violar a Constituição e ameaçar a credibilidade de nossa democracia ao se recusar a seguir os passos de todo presidente americano moderno”, ao não se desfazer de todos os seus negócios, como lhe recomendaram especialistas democratas e republicanos.

Há opiniões divergentes. Jan Baran, que trabalhou no Escritório de Ética do governo de George Bush pai, atribui as dúvidas à intriga política. “É claro que o presidente eleito vai enfrentar críticas de seus oponentes políticos nos próximos quatro ou oito anos. O ônus dele foi não satisfazer as babás éticas que estão confundindo suas opiniões com o que é legalmente exigido”.

Pode ser. Mas, como diz o provérbio: “À mulher de César não basta ser honesta, deve parecer honesta”. Não deve ser à toa que ele continua sendo repetido, mais de dois mil anos depois de César divorciar-se de sua mulher Pompeia, só porque um homem entrou disfarçado em uma festa dada por ela só para mulheres, com o aparente intuito de seduzi-la. Nada aconteceu, mas César explicou: “Minha esposa não deve estar nem sob suspeita”.

Publicado no app EXAME Hoje. Copyright: Grupo Abril. Todos os direitos reservados.

Deixe o seu comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

*