O peso do voto negro

HILLARY CLINTON E BARACK OBAMA: receio de que os negros não se sintam encorajados a comparecer para votar em novembro/ Justin Sullivan/ Getty Images

Lourival Sant’Anna

O presidente Barack Obama declarou que considerará um “insulto pessoal” se os negros não saírem para votar na eleição presidencial do dia 8 de novembro. O apelo de Obama reflete uma preocupação dos democratas com o ressentimento de muitos negros por medidas adotadas na área de segurança pública durante o governo de Bill Clinton, que na visão deles contribuíram para o aumento da violência policial contra suas comunidades. Os democratas temem que, sem o nível recorde de votos negros recebido por Obama, o partido volte ao patamar da eleição de 2004, quando George W. Bush derrotou John Kerry graças, em parte, ao maior comparecimento dos eleitores brancos. Esse temor está levando Obama a reforçar sua identidade negra, e a reescrever uma militância que sempre esteve focada nos mais necessitados, independentemente da cor de sua pele.

“Considerarei um insulto pessoal, um insulto ao meu legado, se esta comunidade baixar sua guarda”, advertiu o presidente, em um jantar no sábado à noite, promovido pela Congressional Black Caucus Foundation, que faz lobby pelos direitos dos negros. “Meu nome pode não estar na cédula, mas nosso progresso, tolerância, democracia e justiça estão. Querem me dar uma boa despedida? Vão votar.” O receio não é o de que os negros votem no republicano Donald Trump. Mas de que não se sintam encorajados a comparecer, na falta do extraordinário incentivo que a possibilidade de um negro presidir o país pela primeira vez significou. Tradicionalmente, o comparecimento dos negros, que representam 13% da população americana, esteve abaixo dos brancos (ver gráfico).

Segundo pesquisa encomendada pelo jornal The New York Times e pela rede de TV CBS, divulgada na semana passada, Hillary Clinton tem vantagem de 83 pontos porcentuais sobre Trump no eleitorado negro. Profundamente identificado com o eleitor branco de baixa instrução, Trump tem feito apelos, sem sucesso: “Olhem como as comunidades afro-americanas estão sofrendo sob o controle democrata”, disse ele em um comício no dia 19 de agosto em Dimondale, no Estado do Michigan, para uma plateia predominantemente branca. “Para eles, eu digo o seguinte: ‘O que vocês têm a perder tentando algo novo, como Trump?’”

Durante as primárias, Hillary contou com o apoio dos democratas negros para derrotar seu rival, o senador Bernie Sanders, de Vermont, que também é identificado com os trabalhadores brancos de baixa instrução, base do sindicalismo. Mas o jogo das primárias é bem diferente das eleições. Esses filiados ao partido que apoiaram Hillary são de idade mais elevada, e sobretudo mulheres. Para derrotar Trump, os democratas acreditam que seria importante contar também com o voto dos jovens negros, dominados pela apatia e pela desilusão. Tradicionalmente, os jovens em geral já comparecem menos às urnas que os mais velhos.

O mau humor dos jovens negros ficou claro em seis pesquisas qualitativas (do tipo focus group) realizadas em Cleveland (Ohio) e em Jacksonville (Flórida), por Cornell Belcher, especialista democrata em opinião pública. A percepção em relação a Hillary é quase tão hostil quanto a Trump. “O que vou fazer se não gosto dele e não confio nela?”, perguntou, por exemplo, uma jovem de Cleveland. “Escolher entre tomar uma facada e um tiro? Sem chance.” Um jovem explicou: “Ela foi parte de todo o problema que começou a mandar os negros para a cadeia”.

Lei aprovada em 1994, segundo ano de mandato de Bill Clinton, aumentou o número de policiais nas ruas e as penas por porte de drogas. Além disso, como parte do esforço de equilibrar as contas públicas, Clinton reduziu os benefícios para os mais pobres, em um corte de US$ 55 bilhões nos seis anos seguintes de seu governo — no qual Hillary era uma ativa primeira-dama, concentrada sobretudo nas questões sociais. A onda de mortes de negros em confronto com policiais trouxe o tema à tona. Segundo levantamento do jornal The Washington Post, ao menos 702 pessoas foram mortas pela polícia este ano, das quais 163 eram negras. Essa fatia representa 23% do total, quase o dobro da proporção de negros na população americana: 13%. De 2014 para cá, 12 mortes resultaram em protestos e confrontos com a polícia.

A falta de credibilidade de Hillary, considerada uma política pouco transparente, por exemplo por esconder problemas de saúde ou ter utilizado uma conta pessoal de emails quando era secretária de Estado, para fugir aos controles públicos, contribui para a desconfiança dos jovens negros. “Ele (Trump) é um racista, e ela é uma mentirosa, então qual é realmente a diferença entre escolher ambos ou ninguém?”, perguntou outra jovem. Num certo sentido, esses jovens negros compartilham o repúdio aos políticos tradicionais, nutrido pelos eleitores de Trump. Apenas se identificam menos ainda com o bilionário de ascendência alemã e escocesa, de maneira que se sentem órfãos nessa eleição presidencial.

“Os jovens se sentem desencorajados e apreensivos sobre o processo político como ele é, e aí olham para as duas opções diante de nós”, descreve Christopher Prudhome, presidente da entidade Vote America Now, que promove o registro de jovens eleitores. Com relação a Hillary, ele acrescenta: “Ninguém viu propostas para jovens afro-americanos. Acho que eles não acreditam que ela se importa com eles.”

Pesquisas quantitativas conduzidas por Belcher, no entanto, mostram que Hillary tem a preferência maciça dos jovens negros. Nos importantes Estados da Flórida, Ohio, Pensilvânia e Virgínia, 70% dos negros com menos de 35 anos declararam apoio a Hillary, 8% em Trump, 18% em um outro candidato (existem três outros disputando nacionalmente e 26 apenas em alguns Estados) ou não sabem. Acontece que, em 2012, Obama venceu com 92% dos votos dos negros com menos de 45 anos.

Os jovens com 18 a 34 anos de idade representam 25% da população negra. “Não existe maioria democrata sem esses eleitores”, sentencia Belcher. “O perigo é, se você não fizer esses eleitores saírem para votar, voltar para a votação de John Kerry em 2004.” Em Ohio, por exemplo, os negros representaram 10% dos votos naquele ano. Já na reeleição de Obama, em 2012, sua fatia saltou para 15%.

Em uma conversa com jovens militantes em Londres, no dia 23 de abril, Obama, talvez se sentindo um pouco mais à vontade para falar longe de casa, queixou-se do desprezo demonstrado por ativistas negros americanos com relação à política tradicional. “Depois de chamar a atenção das pessoas para uma questão, você não pode simplesmente continuar gritando para elas”, criticou o presidente. “Não pode se recusar a se reunir porque isso pode comprometer a pureza de sua posição.”

Obama recebeu no dia 18 de fevereiro na Casa Branca militantes de direitos humanos, incluindo representantes do movimento Black Lives Matter, que luta contra a violência policial contra negros. Aislinn Pulley, fundadora da filial do grupo em Chicago (a cidade onde Obama militou), recusou o convite. Ela justificou depois, em um artigo no site Truthout: “Eu não poderia, com alguma integridade, participar dessa farsa, que só serviria para legitimar a narrativa falsa de que o governo está trabalhando para acabar com a brutalidade policial e com o racismo institucional que a alimenta”.

Sem citar Aislinn, Obama argumentou: “O valor dos movimentos sociais e do ativismo é sentar à mesa e tentar descobrir como um problema pode ser resolvido. Então, você tem uma responsabilidade de preparar uma agenda alcançável, que possa institucionalizar as mudanças que você busca”. O presidente disse que falava de experiência própria: “Comecei como um articulador comunitário tentando pressionar os políticos a fazer as coisas. E agora estou do outro lado”.

Depois de se formar em direito em Harvard, em 1991, aos 30 anos de idade, Obama passou a trabalhar na defesa dos direitos sociais das comunidades pobres de Chicago — que coincidiam apenas em parte de serem negras. Em 1992, ele já teve sua primeira experiência com a política tradicional, promovendo o registro de eleitores pobres, para votarem em Bill Clinton. É como se sua vida tivesse dado uma imensa volta, e retornasse a esse ponto de partida, agora para convencer as pessoas a votarem na mulher de Clinton. A campanha democrata aposta em mais aparições, tanto de Michelle quanto de Obama.

Na manhã seguinte ao apelo do presidente, o reverendo negro Al Sharpton começou a receber ligações no seu programa de rádio dominical “Keepin’ It Real”, de ouvintes que disseram não simpatizar muito com Hillary, mas que não tolerariam “insultar” Obama. “Tornar não votar sinônimo de insulto ao presidente é um tiro no braço”, compara Sharpton. “Esta não é a primeira geração a ser frustrada e não votar não é uma estratégia viável ou inteligente”, disse Marc Morial, diretor da entidade National Urban League, a uma jovem que explicou que as pessoas não votariam por estarem frustradas, durante um debate em Washington.

É possível que o fato de Hillary ser mulher — mesmo que não negra — acabe ajudando.

Nas eleições de Obama, em 2008 e em 2012, as mulheres negras foram o grupo que mais compareceu às urnas, com 74% das pessoas habilitadas a votar nessa categoria. De acordo com pesquisa Gallup divulgada no dia 13 de julho, 72% das mulheres negras temem o resultado das eleições — o que as torna o maior grupo com esse sentimento. “As mulheres negras temem pelo futuro de nossas famílias, e Donald Trump quase representa uma ameaça existencial”, diz a consultora negra Rebekah Caruthers, especialista em participação política. “Acho que isso vai levar as mulheres negras a votar em massa neste ano.”

Sondagem feita no dia 5 de agosto pelo instituto Morning Consult indica que 47% das mulheres em geral votarão em Hillary, contra 34% para Trump. Com relação aos jovens em geral, Hillary tem uma vantagem ainda maior. Segundo pesquisa encomendada pelo jornal USA Today, divulgada no dia 14 de agosto, dos eleitores com menos de 35 anos, 56% votariam em Hillary e apenas 20%, em Trump. O desafio, então, é fazer com que as mulheres jovens negras acompanhem essa tendência, e sobretudo saiam para votar.

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