Trump: nada de adeus às armas

TRUMP: o candidato republicano conta cada vez mais com o lobby pró-armas para chegar à Casa Branca/ Joe Raedle/ Getty Images

Na última confusão em que se meteu, o candidato republicano Donald Trump foi acusado por um advogado imigrante paquistanês de não conhecer a Constituição, por defender a proibição da entrada de muçulmanos nos Estados Unidos. Já não se pode mais acusá-lo disso: na sua mais nova tirada fora da curva, Trump citou a 2.ª Emenda da Constituição de uma maneira que deu a entender que ele estava incitando os cidadãos à luta armada contra um eventual governo de Hillary Clinton, se ela nomear para a Suprema Corte juízes favoráveis à regulação da posse de armas.

“Se ela conseguir escolher os juízes dela, não há nada a fazer, pessoal”, disse Trump, em um comício na terça-feira, 9, em Wilmington, na Carolina do Norte. E, enquanto seus eleitores vaiavam Hillary, ele acrescentou, com sua linguagem sincopada, que deixa claro o que ele quer dizer dentro do contexto e do ambiente, mas que lhe permite depois desdizer recorrendo a uma reinterpretação das palavras literais: “Apesar de que as pessoas da 2.ª Emenda — talvez haja, eu não sei.” Em um vídeo desse momento do comício compartilhado na internet, um espectador grisalho, atrás de Trump, faz uma cara perplexa, como se dissesse: “Caramba, ele disse isso!”, enquanto outros se divertem com mais esse atrevimento de seu ídolo.

Na véspera, em Detroit, símbolo da decadência da indústria americana, Trump havia feito um discurso de apresentação de sua plataforma econômica, apoiado pelo anúncio de uma equipe formada por banqueiros e empresários bilionários como ele. A ideia de seus assessores era ele assumir uma postura mais “presidencial”. Mas Trump não se contém — ou acredita que é assim que vai se eleger. A tirada em Wilmington anulou os efeitos da iniciativa da véspera. Até a CIA entrou na jogada. Seus agentes conversaram com a equipe de campanha de Trump, para esclarecer o que ele queria dizer. Afinal, cabe ao serviço secreto proteger a vida da presidente.

Num país como os Estados Unidos, não dá para brincar com essas insinuações. Como tuitou o senador democrata Chris Murphy: “Isso não é brincadeira. Pessoas instáveis com armas poderosas e ódio incontível por Hillary estão ouvindo você, @realDonaldTrump”, dirigindo-se à conta do candidato na rede. Murphy é autor de uma proposta de maior controle da venda de armas, tema ao qual passou a se dedicar depois do massacre na escola primária de Sandy Hook, em seu Estado, Connecticut, em dezembro de 2012, quando um rapaz de 20 anos matou 20 crianças entre 6 e 7 anos e outros 6 adultos.

Em um comício em Des Moines, Iowa, na quarta, Hillary condenou Trumpo por sua “incitação casual à violência”, e aproveitou para bater na tecla de que ele “não tem o temperamento para ser presidente e comandante-chefe” do país. “As palavras importam, meus amigos. E se você concorre à presidência ou é presidente dos Estados Unidos, as palavras podem ter tremendas consequências. Ontem testemunhamos à última de uma longa lista de comentários casuais de Donald Trump que ultrapassam a linha.”

O líder republicano na Câmara dos Deputados, Paul Ryan, que tem se estranhado com Trump desde o início da corrida presidencial, disse a repórteres que o episódio parece ter sido “uma piada que não deu certo”, e acrescentou: “Você nunca deve fazer piada disso. Espero que ele esclareça”.

Como já havia feito outras vezes — por exemplo quando disse que poderia haver “distúrbios” na convenção republicana se seu nome não fosse referendado pelos delegados —, Trump procurou depois reinterpretar suas palavras. Ele garantiu que se referia à capacidade de mobilização política dos defensores do direito à posse de armas. “As pessoas da 2.ª Emenda têm um poder tremendo porque são tão unidas”, disse ele naquela noite a uma repetidora local da CBS. E, mais tarde, à Fox News: “Não pode haver outra interpretação. Quer dizer, dá um tempo.”

O problema da 2.ª Emenda é que, pelos menos numa leitura atual, ela parece tão ou mais ambígua que o próprio Trump. O texto, acrescentado em 1781 à Constituição, que é de 1787, diz simplesmente: “Uma milícia bem regulada, sendo necessária para a segurança de um Estado livre, o direito do povo de possuir e usar armas, não será infringido”. Na época, os americanos estavam partindo para a conquista do Oeste, e usavam armas para se defender dos índios e de si mesmos, já que os braços da lei e do Estado ainda eram meio curtos para tanta riqueza e desbravamento.

Ao longo dos séculos, esse texto foi sendo reinterpretado de acordo justamente com a composição da Suprema Corte, mais ou menos favorável ao controle do uso de armas. Daí a preocupação dos defensores desse direito.

Conforme explica um manual editado pelo Instituto de Informação Legal da Faculdade de Direito da Universidade Cornell, em Ithaca (Nova York): “De um lado, alguns acreditam que a frase da emenda ‘o direito das pessoas de ter e usar armas’ cria um direito constitucional individual para os cidadãos. Por essa teoria do direito individual, a Constituição impede o Legislativo de proibir a posse de armas. De outro lado, alguns estudiosos apontam para a expressão ‘uma milícia bem regulada’, para argumentar que os autores pretendiam apenas impedir o Congresso de tornar ilegal o direito do Estado à autodefesa. É a teoria dos direitos coletivos”.

Em suas decisões, a Suprema Corte usou essa emenda para, em alguns momentos, garantir o direito dos cidadãos de possuir suas armas, e noutros, para assegurar aos Estados a preorrogativa de regular e de restringir essa posse.

Em 1939, a Suprema Corte julgou que o Congresso podia regular o uso de revólveres de cano curto — mais fáceis de portar sem serem notados.

Já em 2008, o tribunal derrubou, por 5 votos a 4, a proibição de revólveres que havia sido imposta em Washington D.C., que tinha a legislação mais restritiva do país. Dois anos depois, a Corte tomou uma decisão mais equilibrada, também por 5 a 4. O banimento quase total de revólveres pela cidade de Chicago foi derrubado, mas foi mantido o direito do poder público de proibir a entrada de armas em propriedades do governo, o uso por menores e condenados por crimes, e a obrigatoriedade de autorização para posse de armas.

Se eleita, Hillary nomeará um ministro da Suprema Corte para o lugar de  Antonin Scalia, um juiz conservador, indicado pelo republicano Ronald Reagan, e que morreu em fevereiro. É provável que o próximo ou a próxima presidente ainda faça outras nomeações, inclinando a balança dos julgamentos para um lado ou para o outro.

“Apesar do que Hillary diz para tentar se eleger, ela encheria a Suprema Corte de ministros antiarmas, que derrubariam nosso direito fundamental à autoproteção”, diz Chris Cox, encarregado do fundo de financiamento de campanhas políticas da Associação Nacional do Rifle (NRA), um dos mais ativos lobbies de Washington. “Portanto, é um eufemismo dizer que o futuro da liberdade americana está em jogo em novembro.”

A NRA investiu até agora US$ 6,5 milhões em anúncios a favor de Trump e contra Hillary. A ajuda é importante, porque já foram gastos US$ 90 milhões na campanha de Hillary, com dinheiro próprio e de aliados. E a campanha de Trump, em grande parte financiada com recursos do bilionário, não colocou nenhum centavo ainda em anúncios.

No mesmo dia da tirada polêmica de Trump, terça-feira, a NRA colocou no ar, em Estados cujo eleitorado é indefinido, um comercial de 30 segundos, que mostra Hillary embarcando em um avião executivo. Um narrador em off diz: “Ela é uma das mulheres mais ricas da política. Receita somada: US$ 30 milhões. Viaja pelo mundo em jatos privados. Protegida por guardas armados há 30 anos, ela não acredita no seu direito de ter uma arma em casa para autodefesa. E agora a política de armas dessa hipócrita o deixaria indefeso”.

O deputado republicano Newt Gingrich, ex-presidente da Câmara e apoiador de Trump, diz que o eleitorado favorável à posse de armas “é provavelmente a base de votos única mais confiável, e uma das razões pelas quais na América rural você vê agora o virtual colapso do Partido Democrata”.

De acordo com levantamento do Centro de Pesquisas Pew, feito em julho do ano passado, 50% dos americanos apoiam o controle da posse de armas e 47% são a favor do direito a ela. Já uma pesquisa do Gallup de outubro mostra que 41% têm armas em casa. E que 55% pedem leis mais estritas para o controle da venda de armas, 33% querem que elas continuem como estão e 11%, leis menos estritas. Ou seja, somando os dois últimos grupos, 44%, dá um resultado próximo do da pesquisa do Pew, de 47% a favor das armas. Mas, como mostram também as duas sondagens, mais da metade dos americanos é a favor de um maior controle.

Claro que essa não é a única questão que decidirá as eleições de novembro. Mas ela é emblemática da diferença essencial entre democratas e republicanos: a divisão de tarefas entre o Estado e o indivíduo na solução dos problemas. No caso, os democratas seguem a linha clássica do “monopólio da força pelo Estado”, que em última análise é um dos pilares do Estado moderno.

Neste momento, a questão funciona como termômetro do humor geral dos eleitores: segundo a média das pesquisas, calculada pelo site Real Clear Politics, Hillary tem 48% das intenções de voto e Trump, 40,3%. Vamos ver se Trump ainda tem bala na agulha, por assim dizer.

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