Trump Tour: gafes, polêmicas e ameaças

PAPA FRANCISCO E DONALD TRUMP: além de entregar documentos sobre ecologia, pontífice chegou a insinuar que presidente americano estaria gordo/ Osservatore Romano

A primeira viagem internacional de Donald Trump como presidente equivale a um mostruário das vastas e profundas mudanças que seu governo representa para a política externa americana — e, consequentemente, para o mundo. Depois de retomar a aliança incondicional com a Arábia Saudita e com Israel, denunciando o acordo nuclear com o principal inimigo de ambos, o Irã, o presidente americano se recusou a se comprometer com a defesa dos aliados na Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) e com o Acordo de Paris sobre mudança climática.

Em uma entrevista em julho do ano passado, o jornal The New York Times perguntou a Trump se ele protegeria os membros da Otan no Leste Europeu de uma eventual agressão russa. “Se eles cumprirem as obrigações deles conosco, a resposta é sim”, respondeu o então candidato republicano à presidência. As “obrigações” a que se referiu Trump eram que todos os membros da Otan gastassem ao menos 2% de seu PIB com defesa, como recomenda a própria aliança. Apenas 5 dos 28 atingem esse patamar: EUA, Reino Unido, Grécia, Estônia e Polônia.

Em seu discurso na sua primeira reunião de cúpula da Otan, na quinta-feira em Bruxelas, Trump assinalou que “23 dos 28 países membros ainda não estão pagando o que deveriam”, e que devem “enormes somas” há vários anos. Na verdade, o fato de não alcançarem a meta recomendada não gera uma dívida formal para os países membros. “Isso não é justo com as pessoas e os contribuintes dos Estados Unidos”, protestou.

Trump não mencionou o Artigo 5 da Carta da Otan, que prevê a defesa mútua. É a primeira vez desde a criação da aliança, em 1949, que um presidente americano coloca em dúvida esse compromisso. A Otan foi criada para defender os EUA e a Europa Ocidental, capitalista, da União Soviética e seus satélites do Leste Europeu, que criaram o Pacto de Varsóvia para se contrapor a ela. Trump chegou a chamar a aliança de “obsoleta” durante a campanha, mas em abril mudou sua posição, qualificando-a de “alicerce da paz e da segurança internacionais”. A simpatia manifesta de Trump pela Rússia, incluindo sua concordância com a anexação em 2014 da Crimeia, antes pertencente à Ucrânia, agrava as preocupações dos europeus.

Os burocratas da Otan tentaram sensibilizar o presidente americano, inaugurando um novo memorial no local onde foram realizados os discursos dos governantes, na sede da organização. Chamado “Memorial 11 de Setembro e Artigo 5”, ele inclui um pilar contorcido das Torres Gêmeas, alvo do atentado da Al-Qaeda em 2001. Em resposta ao atentado, a Otan criou uma força-tarefa para apoiar o combate à Al-Qaeda e ao Taleban no Afeganistão. Foi a única operação da aliança baseada no Artigo 5.

Não adiantou. Numa amostra de rejeição a sua atitude, os governantes europeus deram as costas a Trump depois de seu discurso, e formaram rodinhas para conversar animadamente, enquanto o presidente americano ficou sozinho no salão.

Durante a cúpula, Trump ainda teve de ouvir queixas da primeira-ministra britânica, Theresa May, por causa do vazamento de informações sobre as investigações do atentado de segunda-feira em Manchester, reivindicado pelo Estado Islâmico. A imprensa americana divulgou o nome do autor, Salman Abedi, de 22 anos, quando a polícia britânica o mantinha em sigilo, porque ainda estavam sendo feitas buscas em Manchester e na casa de seus familiares em Trípoli, capital da Líbia. Além disso, o jornal The New York Times divulgou fotos da perícia do local do atentado. De acordo com as autoridades britânicas, as informações partiram de agentes de inteligência americana.

May relembrou a Trump que a estreita cooperação entre os dois países na área de inteligência tem de estar construída sobre a confiança. A controvérsia é emoldurada pelo fato de o próprio presidente ter sido acusado de ter entregado ao chanceler russo, Sergey Lavrov, informações que permitiam identificar um agente israelense atuando em território controlado pelo EI.

Nesse caso, no entanto, May recebeu total apoio de Trump, que também se diz vítima de vazamentos da CIA e do FBI, com os quais vive às turras, por causa das investigações sobre suas relações com a Rússia e sobre a interferência do país na eleição presidencial americana. Em fevereiro, logo depois da demissão do chefe do Conselho de Segurança Nacional, general Michael Flynn, por ter omitido uma conversa com o embaixador russo em Washington, Sergey Kislyak, Trump se queixou no Twitter de “tantos vazamentos ilegais saindo de Washington”.

A May, Trump assegurou: “Os supostos vazamentos saindo das agências do governo são profundamente perturbadores. Eles vêm acontecendo há muito tempo e meu governo vai (investigar) até o fim disso. Não há nenhuma relação que valorizamos mais do que o relacionamento especial entre os Estados Unidos e o Reino Unido”.

May tem razões para se preocupar. Ela convocou eleições antecipadas para o dia 8, confiante de que seu Partido Conservador ampliaria as cadeiras no Parlamento, reforçando seu mandato para negociar a saída do Reino Unido da União Europeia. Entretanto, nos últimos dias, sua vantagem sobre o Partido Trabalhista veio se estreitando, chegando a 5 pontos, de acordo com algumas sondagens.

Uma das razões pode ser a sensação de insegurança criada pelos dois atentados terroristas ocorridos recentemente. No mês passado, quando Khalid Masood, um inglês de 52 anos convertido ao islamismo, atropelou pedestres na Ponte de Westminster e tentou invadir o Parlamento em Londres, deixando 6 mortos e 49 feridos, foram feitas críticas a falhas no sistema de segurança. O líder trabalhista, Jeremy Corbyn, tem condenado cortes nos gastos com segurança e prometido mais investimentos nessa área. May era ministra do Interior, responsável pela segurança pública, antes de assumir o governo em julho. Ela viu como os atentados na França contribuíram para a queda de popularidade do ex-presidente François Hollande e para o desempenho pífio do seu candidato, o socialista Benoît Hamon, que ficou em quinto lugar, com 6%, no primeiro turno da eleição presidencial francesa, no mês passado.

Trump teve também um almoço privado com o recém-eleito presidente francês, Emmanuel Macron, na residência do embaixador americano em Bruxelas, onde ficou hospedado. Macron foi pedir ao presidente americano para não retirar os EUA do Acordo de Paris, firmado em uma conferência da ONU sobre mudanças climáticas em 2015. Os cientistas consideram que, se os EUA, segundo maior poluidor do mundo (depois da China), não cumprir os compromissos de corte de emissão de gases do efeito estufa assumidos pelo então presidente Barack Obama, os esforços para conter o aquecimento global serão bastante prejudicados.

 

O papa e a potica 

Depois da reunião em Bruxelas, e de um encontro com o papa Francisco em Roma, Trump seguiu para a cúpula do G-7, as sete economias mais avançadas do mundo, em Taormina, na Itália. E lá, em reuniões privadas com outros governantes, também ouviu repetidos pedidos para que não retire os EUA do Acordo de Paris. Sua resposta, no entanto, seguiu a mesma lógica de sua posição em relação aos gastos com defesa da Otan: ele só cumprirá os compromissos se eles não prejudicarem a economia americana. “Se essas duas coisas entrarem em choque, fazer nossa economia crescer vai prevalecer”, declarou a imprensa Gary Cohn, assessor econômico de Trump.

Antes da cúpula, o presidente americano se reuniu — pela terceira vez desde que foi eleito — com o primeiro-ministro do Japão, Shinzo Abe. O principal tema da conversa foram os testes da Coreia do Norte com mísseis e ogivas nucleares. “É um grande problema, um problema mundial”, avaliou Trump, ao sair do encontro. “Será resolvido em algum momento. Podem apostar.” Trump já declarou recentemente que, se a China, principal aliada da Coreia do Norte, não a contiver, os EUA o farão.

Em meio a tantos embates, Trump aproveitou a viagem para uma tentativa de reconciliação. O presidente, que vinha de encontros amenos com líderes muçulmanos (na Arábia Saudita) e judeus (em Israel), visitou o líder religioso com quem tem a relação mais difícil — o papa Francisco.

Os dois se estranharam durante a campanha, quando o papa considerou “não cristã” a proposta de Trump de construir um muro na fronteira com o México — um país profundamente católico. Trump além disso chamou os mexicanos de “criminosos” e “estupradores”. Na visão de Francisco, uma atitude “cristã” seria construir “pontes”. Trump reagiu chamando o comentário do papa de “uma “desgraça”.

O papa até esboçou sorrisos ao receber Trump e sua mulher Melania, e ao conversar com o presidente a sua escrivaninha. Entretanto, na importante sessão de fotos, que seriam distribuídas para o mundo todo e se tornariam o registro histórico do encontro, o papa fez uma expressão contrariada, enquanto Trump sorria para as câmeras.

Um meme viralizado nas redes sociais simulava os dedos de Trump tentando acariciar a mão do papa, que o repelia. Tratava-se obviamente de uma montagem, mas era uma metáfora da situação. Trump declarou que o encontro foi “a maior honra de sua vida”. Já o papa lhe deu seus escritos, um sobre a importância da família e outro sobre o meio ambiente. Os dois poderiam ser interpretados como lições de moral para o presidente americano. Ele está no terceiro casamento e foi flagrado em vídeo vangloriando-se de sua capacidade de agarrar as mulheres pelo órgão sexual. Além de suas posições em favor do consumo de combustíveis fósseis e de ceticismo sobre o aquecimento global.

O único momento de leveza foi quando o papa perguntou brincando a Melania se ela estava alimentando o marido com “potica”, uma torta eslovena. Melania, nascida na Eslovênia, respondeu com entusiasmo que sim. Não foi exatamente uma brincadeira agradável, o anfitrião chamar seu vaidoso visitante de gordo. Mas era o que o humor argentino do papa tinha a oferecer a Trump.

Que semana!

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