Desaparecimentos unem setores rivais e enfraquecem governo

Corrupção e alto índice de criminalidade contribuem para crise

CIDADE DO MÉXICO – O desaparecimento dos 43 estudantes há quase dois meses desencadeou uma onda de manifestações no México que tende, se não a desestabilizar o governo do presidente Enrique Peña Nieto, a fragilizá-lo. Pela primeira vez, os protestos unem setores que costumam estar de lados opostos, como grupos radicais de esquerda, trabalhadores urbanos e rurais, sem-teto, sem-terra, profissionais liberais e integrantes da classe média e alta branca, chamados de “gueros”, em um país de feição maciçamente indígena.

“Há indignação partindo da juventude, com forte irradiação nos setores populares organizados e também na classe média”, analisa Massimo Modonesi, pesquisador de movimentos sociais latino-americanos e professor de sociologia da Universidade Nacional Autônoma do México (Unam). “É um movimento de grande amplitude, e por isso preocupa muito o governo.”

“Apenas a juventude radicalizada não produz grandes efeitos políticos, mas, quando se junta aos setores populares organizados e à classe média ilustrada, em algum momento tem feito cair governos na América Latina”, observa o especialista. Como aconteceu no Brasil em junho do ano passado, acrescenta Modonesi, essa onda de indignação “pode não desbordar ao estilo boliviano, mas marcar um ponto de inflexão na história política, fragilizar o governo e afetar sua credibilidade”.

Professores, funcionários públicos, eletricistas e trabalhadores na telefonia aderiram às manifestações para protestar contra as “reformas estruturais” lançadas por Peña Nieto. Elas vinculam os salários e contratação de professores ao seu desempenho, promovem a diminuição no número de servidores públicos e levam adiante as privatizações de serviços públicos iniciadas nos anos 90. A quebra do monopólio da estatal Pemex cria uma sensação difusa no imaginário popular de que o petróleo, fonte de mais de 50% da receita do Estado mexicano, “não é mais nosso”, explica Carlos Aguirre, do Instituto de Investigações Sociais da Unam.

No período de um ano, a rejeição ao governo aumentou 9 pontos porcentuais, segundo pesquisa do Pew Research Center, que indicou em agosto que 47% o consideravam ruim ou péssimo. A queda de popularidade foi atribuída às reformas. Com relação ao crime organizado e aos desaparecimentos, Peña Nieto adotara a política de ignorar o assunto, concentrando-se nas chamadas reformas estruturais e no crescimento da economia – que o Ministério da Fazenda estimou na sexta-feira que ficará acima de 2%, depois de um fraco 1,1% em 2013.

Seu antecessor, Felipe Calderón, depois de declarar “guerra” ao narcotráfico no início do governo, em 2007, e assistir ao recrudescimento da violência, tentou, no final do mandato, a mesma estratégia. Sem que os casos tivessem sido esclarecidos, a cifra oficial de 26 mil desaparecidos caiu para 8 mil – ou seja, dois terços dos desaparecidos “desapareceram”. Com a repercussão do caso dos 43 estudantes, Peña Nieto não poderá mais ignorar o assunto.

O que no entanto alivia a situação do presidente é que todos esses problemas podem ser atribuídos, com igual ou maior gravidade, aos tradicionais adversários do seu Partido Revolucionário Institucional (PRI). O Partido da Ação Nacional (PAN), que governou o país nos últimos 12 anos, está à direita do PRI, e impulsionou políticas identificadas como “neoliberais” – com exceção de um inchamento no número de servidores federais.

À esquerda do PRI, o governador afastado de Guerrero e o prefeito preso de Iguala, onde os jovens desapareceram, pertenciam ao Partido da Revolução Democrática (PRD), cujo candidato, Andrés Manuel López Obrador, ficou em segundo lugar nas duas últimas eleições presidenciais. O desaparecimento dos jovens levou o PRD a um estado de “dissolução”, nas palavras de seu fundador, Cuauhtémoc Cárdenas, que exigiu a renúncia da direção do partido. Não foi atendido, mas há um consenso de que o PRD, que já sofria de “morte cerebral”, por ter pedido a identidade ideológica, está agora enterrado, atesta Modonesi, autor de um livro sobre o partido.

Restariam, então, como alternativas políticas, eventuais lideranças surgidas do movimento de indignação pelo desaparecimento dos 43 jovens ou um novo partido lançado este ano justamente por López Obrador, que contribuiu para a desidratação do PRD, arrastando consigo uma parte da agremiação. Sintomaticamente, sua nova legenda, cujo registro foi oficializado em julho, não tem o nome de “partido”, mas de Movimento de Regeneração Nacional, e é conhecido pelo acrônimo Morena.

A fragmentação dos grupos que participam dos protestos e a sua pauta difusa – quando não contraditória entre os diversos setores – não sugerem a construção de uma alternativa política sólida, com chances de disputar o poder. Muitos dos manifestantes, pertencentes a “coletivos”, rejeitam a democracia representativa, e realizam assembleias, nas quais exercem um suposto poder paralelo local e autônomo, sem projeção nacional.

“Não creio que passe de um amontoamento o que está se fazendo nas marchas, e isso não é unidade”, descarta Alejandro Cerezo, membro da Campanha Nacional contra os Desaparecimentos Forçados, que reúne mais de 50 organizações. “Não há um projeto.” Cerezo aposta no crescimento do partido de López Obrador, que não reconheceu suas duas derrotas eleitorais, chegando a ocupar por três meses o Paseo de la Reforma, no coração da Cidade do México: “Gostem ou não, o Morena aglutina”. O primeiro teste real serão as eleições estaduais e municipais de junho do ano que vem. Não há reeleição presidencial no México, e o mandato de Peña Nieto, de seis anos, vai até 2018.

Publicado em O Estadão. Copyright: Grupo Estado. Todos os direitos reservados.

Deixe o seu comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

*