México: entre o muro e a glória

Peña Nieto, presidente do México: ofensiva diplomática para barrar Trump nas eleições americanas/ Henry Romero

O México enfrenta duas ameaças: Donald Trump, com sua hostilidade ao comércio e aos imigrantes, e a América Central, com habitantes dos seus países violentos e pobres usando o território mexicano para tentar entrar ilegalmente nos Estados Unidos. Mas a economia do país vai bem, graças à sua abertura comercial, à responsabilidade fiscal e à aprovação de um pacote de reformas. O contraste com o Brasil é desconcertante: este país enfrenta ameaças externas bem menos sérias, mas conseguiu se atrapalhar todo com seu protecionismo, sua gastança desenfreada e a paralisia de sua pauta de reformas.

Em um seminário nesta terça-feira, 24, na Fundação FHC, um cientista político e um economista mexicanos, um especialista brasileiro em comércio exterior e o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso discutiram os efeitos benéficos das políticas implantadas no México — e relegadas no Brasil —, assim como os desafios enfrentados pelo país.

“O pesadelo da diplomacia mexicana, entrar na campanha eleitoral americana, cumpriu-se”, constatou o cientista político Rafael Fernández, professor do Instituto Tecnológico Autônomo no México, editor da revista Foreign Policy em espanhol e assessor de política externa do ex-presidente Felipe Calderón entre 2008 e 2011. Trump tem dito que vai construir um muro na fronteira EUA-México para barrar a entrada de imigrantes e mandar a conta para o governo mexicano. E ameaça romper o Tratado de Livre Comércio da América do Norte (Nafta), entre EUA, México e Canadá, em vigor desde 1994. Além disso, a candidata democrata Hillary Clinton fala em congelar a recém-lançada Parceria Transpacífico (TPP), da qual o México faz parte, com outros 11 países. “Não dou a TPP por morta com Hillary porque é fantástica para os EUA na relação com a China, dá-lhe um instrumento. Mas será congelada.”

O presidente Barack Obama impulsionou a finalização da TPP, alcançada em fevereiro deste ano, com o objetivo explícito de isolar a China, que está excluída da parceria. Embora tenha sido secretária de Estado no primeiro mandato de Obama (2009-2013), Hillary se opôs ao tratado durante a campanha. Em comício no dia 11 para trabalhadores no epicentro da indústria automobilística em Detroit, Michican, Hillary declarou : “Minha mensagem para todo trabalhador no Michigan e em toda a América é essa. Vou parar qualquer acordo comercial que matar empregos ou mantiver os salários baixos, incluindo a Parceria Transpacífico. Eu me oporei a ela agora, depois da eleição e quando for presidente”.

Hillary assumiu essa posição pressionada tanto por Trump quanto por seu rival democrata nas primárias, o socialista Bernie Sanders, que tem os sindicatos como um de seus redutos e fez uma cruzada contra a queda das barreiras comerciais, que ele responsabiliza pela “exportação de empregos”. O raciocínio é o de que as empresas americanas se transferiram para outros países com mão de obra mais barata — como o México e a China —, de onde podem exportar para o mercado americano, graças aos acordos comerciais.

O cientista político diz que o governo do México — com seus 50 consulados nos Estados Unidos — está em campanha para mobilizar os imigrantes mexicanos no país vizinho para se oporem a Trump. De acordo com ele, trata-se de um contingente de 35 milhões de pessoas de origem mexicana, dos quais, 24 milhões nascidos nos EUA e 11 milhões, no México. “O México comprou a briga”, conta Fernández. “A partir de maio e junho, mudou o embaixador em Washington e o subsecretário para a América do Norte, e houve um despertar diplomático.” E da diáspora. “Trump despertou os anticorpos. Do mais humilde agricultor no Illionois ao empresário, há um sentido de derrotar Trump.” Os 50 cônsules mexicanos chegaram a se reunir com o eficientíssimo Comitê Judaico Americano para que lhes ensinasse a fazer lobby. Isso, sim, é aprender com quem sabe.

Ele diz que a chanceler mexicana, Claudia Ruiz Massieu Salinas, de 44 anos, “muito jovem e ambiciosa, está visitando muitas partes dos EUA para aumentar a presença mexicana”. O governo lançou uma nova campanha, na qual afirma que 6 milhões de empregos nos EUA são gerados pelas relações com o México. O país é o segundo mercado dos produtos americanos, depois do Canadá, e destino de 15% das exportações dos EUA — US$ 1,4 bilhão por dia. “Teria que somar China, Alemanha e Índia para dar as exportações americanas ao México”, compara o cientista político. “Construir um muro é um tiro no pé.”

A outra ameaça, diz o cientista político, é que “a América Central é a Síria das Américas e o México, o Mediterrâneo”. Na fronteira com o México, a polícia americana prendeu pela primeira vez no ano passado mais imigrantes ilegais não mexicanos que mexicanos. Além dos centro-americanos, a vizinhança com os EUA tem atraído também imigrantes de outras partes do mundo, como sírios e afegãos. Este ano, a estimativa é de que 350 mil imigrantes cruzem o território mexicano em direção aos EUA. Em 2015, foram 300 mil. Muito dessa fuga desesperada é motivado pela violência das gangues de narcotraficantes, contrabandistas de armas e criminosos comuns que assola a região. No ano passado, El Salvador foi o país sem guerra declarada mais violento do mundo, com 103 homicidios por 100 mil habitantes. Em 2014, tinha sido Honduras.

O economista Emilio Ricardo Lozoya, presidente da estatal do petróleo Pemex entre 2012 e fevereiro deste ano, e agora gestor de um grande fundo de investimentos, causou inveja nos participantes do seminário — empresários, pesquisadores e diplomatas — ao desfilar os índices mexicanos: inflação de 2,13%  em 2015, abaixo da meta de 2,5% do Banco Central; crescimento de 2,8% do PIB no primeiro trimestre, com estimativa de 2% a 2,5% este ano; desemprego de 3,9%; relação dívida/PIB de 48%.

A produção da Pemex caiu nos últimos dez anos, de 3,4 milhões de barris por dia para 2,2 milhões. Segundo Lozoya, isso foi resultado de um desinvestimento da empresa, porque o governo drenava seus recursos para cobrir seus gastos. Com a abertura para a entrada de empresas estrangeiras — uma das reformas conduzidas pelo governo do presidente Enrique Peña Nieto—, “haverá mais capacidade de investir e reverter essa queda”, aposta o ex-presidente da Pemex. O custo total de produção da Pemex é relativamente baixo: US$ 23 o barril. “Investir no setor de combustíveis do México é interessante e rentável.”

Em 2013 foi concluída uma malha de gasodutos para a distribuição do gás dos EUA no México, para se beneficiar de seu baixo preço: US$ 3 por milhão de unidades termais britânicas (MBTUS), quando noutros países o valor alcança de US$ 8 a US$ 10, segundo Lozoya. “Isso aumentará muito a competititvidade do México.”

Ele observou que o petróleo e gás representam hoje apenas 6% do PIB. “Houve uma mudança radical a partir do Nafta”, disse Lozoya. “O coração da economia são hoje manufaturas e serviços, e 70% do PIB depende de transações externas.”

Entretanto, a queda do preço do petróleo tem forte impacto, porque o setor responde por 25% a 30% das receitas tributárias. Diante disso, “o governo atual, de forma muito prudente, diminuiu o ritmo do gasto e do investimento em 1% do PIB, levando o déficit fiscal de 2016 para projeção de superávit em 2017”.

Famoso por suas “maquiladoras”, como chama suas montadoras, o México é um dos quatro maiores exportadores de automóveis do mundo. A fraca demanda mundial causou um crescimento de apenas 0,3% na indústria no primeiro trimestre. “Mas o consumo privado está compensando a queda no setor externo”, atesta Lozoya. Em três anos, mais de 1 milhao de empregos foram gerados.

No início do mandato de Peña Nieto, em 2012, o governo fez uma análise dos fatores que desestimulavam a produtividade: instituições frágeis, economia informal, baixos níveis de crédito, infraestrutura deficiente e, paradoxalmente para um país exportador de petróleo, altos custos da energia. Uma vez definida a pauta de reformas para atacar essas deficiências, seguiram-se meses de negociações secretas com os três principais partidos do país.

No que ficou conhecido como Pacto pelo México, o Congresso aprovou as seguintes reformas: fim do monopólio nas telecomunicações, que baixou o preço da assinatura mensal de banda larga de 1.500 pesos (R$ 262) para 300 pesos (R$ 52); flexibilização das leis trabalhistas; da educação, atrelando a remuneração ao desempenho; do setor financeiro; política, eleitoral e de transparência; e da previdência, com a elevação da idade mínima de aposentadoria de 55 para 65 anos. Todas requereram dois terços no Congresso. Houve resistências, diz Lozoya, mas prevaleceu a noção de que era preciso fazer concessões para as condições gerais melhorarem, com benefícios para todos.

Como resultado, “as ações na Bolsa de Valores estão atingindo valores inéditos, com as empresas gerando lucros recorde”, diz o economista. “É importante que os próximos governos implementem as reformas aprovadas. A perspectiva é de que o país decole.”

No comércio exterior, “estreitar as relações com os EUA rendeu resultados”, constata Lozoya. “É a melhor economia do mundo. A China está se desacelerando.” Depois do Nafta, o México já firmou mais de 40 tratados de livre comércio em todo o mundo. “Embora concentrados nos EUA, estamos nos diversificando”, observa o economista. “Esperamos que se alastre para o Pacífico e para o Brasil.”

Pedro da Motta Veiga, diretor do Centro de Estudos de Integração e Desenvolvimento (Cindes), do Rio, lembrou que, nos anos 80, o Brasil era membro do Acordo Geral de Tarifas e Comércio (Gatt) e o México não era. “A partir do Nafta, no começo da década de 90, o México fez acordos com a União Europeia e com países asiáticos, e complementou com uma redução unilateral de suas tarifas em 2009.” Para o especialista, nada mais distante do que o Brasil do México, em matéria de comércio exterior: “No Brasil, desenvolver-se é industrializar-se e industrializar-se é através da substituição de importação. É um mantra”. Segundo ele, a substituição de importação surtiu efeito até 1980. “Passaram duas gerações e o Brasil continua acreditando nela.” Com a baixa exposição à concorrência internacional, o Brasil “homogenizou sua produtividade por baixo”, diz Veiga. “A armadilha da baixa produtividade reflete diretamente o fato de o Brasil estar desconectado dos mercados internacionais. Já o México começou a negociar acordos comerciais colocando a barra no nível mais alto: com EUA e Canadá.”

Para Veiga, o México e outros países demonstraram, tanto no Nafta como no TPP, “clara capacidade de dosar a liberalização com elementos de prudência, respeito a certas susceptibilidades”. Eles impuseram reservas ao compromisso que preservam seus interesses — no caso mexicano, para os setores de energia e transporte. “Todo país tem um padrão de reservas que refletem sua economia doméstica. Não é um big bang aberturista. Tem prazos. Não tem efeito deletério.”

Em contraste, o especialista observa que os governos do PT foram os mais “industrialistas” dos últimos anos, aplicando isenções tributárias e outros incentivos. “Mesmo assim, a indústria perde pontos do PIB a cada ano. A fatia atual, entre 9% e 10%, equivale à dos anos 50. É um paradoxo, uma política industrial sem resultado.”

Na visão dele, a proposta da Área de Livre Comércio das Américas (Alca) foi uma “senhora oportunidade perdida, por razões ideológicas”. Veiga lembrou que, na conferência ministerial da Alca em Miami, em dezembro de 2003, diante da resistência brasileira, o então secretário americano para o Comércio Exterior, Robert Zoellick, acertou com o então chanceler Celso Amorim um modelo de acordo de “dois andares”: os países mais abertos, como México e Chile, poderiam ficar no segundo andar, no topo da liberalização, enquanto que os mais resistentes, como o Brasil, ficariam no primeiro, com um acordo menos abrangente. “O acordo foi anunciado e depois o Brasil colocou uma série de dificuldades e voltou atrás”, recorda o especialista.

Fernando Henrique lembrou que esteve na primeira reunião da Alca, em 1994, como presidente eleito, ao lado do então presidente Itamar Franco. “A Alca foi uma dor de cabeça”, disse ele. “Ninguém sabia o que fazer. A negociação não passou pelo debate político nacional, mas por diplomatas. Eu me debati muito tempo aqui sobre que posição tomar. Nem os economistas nem os empresários sabiam se valiam a pena ou não. Fiz o discurso de abertura, e pus tantos obstáculos para tornar impossível o acordo.”

O ex-presidente ponderou que, se os empresários não queriam sequer o Mercosul, que dirá um acordo com os EUA. “Nossa estratégia de inserção sempre foi substituição de importações”, concorda ele. “Isso está no nosso subconsciente nacional. Creem que globalização é imperialismo, que nos faz piorar, que não temos nenhuma chance. Perdemos muitas oportunidades.” Fernando Henrique acha que, “com Lula, ainda foi possível discutir um pouco, mas com Dilma voltamos a Geisel (1974-79)”, prevalecendo a seguinte ideia: “Vamos nos isolar, deixar o gigante deitado em seu berço esplêndido”.

Ele considera que há, agora, uma oportunidade de abertura: “Tudo vai tão mal, as estruturas econômicas e políticas estão tão desorganizadas, que é mais fácil mudar. Sei que é muito difícil. Quando fui ministro da Fazenda, me coube a decisão de seguir ou não a política de (abertura) de Collor. A pressão (da indústria) de São Paulo, especialmente, foi brutal para não seguir”.

Os dois mexicanos acham que volta a haver condições para um acordo de livre comércio entre México e Brasil. “O Brasil tem tecnologia no setor de agronegócios, e o México é um importador grande”, observou Fernández, que trabalhou na preparação da visita de Calderón ao Brasil, em 2009. “Os agricultores mexicanos têm muito medo, mas a aproximação poderia mudar o cenário latino-americano.” Segundo Lozoya, há “oportunidades muito grandes” esperando as empresas brasileiras do setor petroquímico no México. “A Pemex não teve recursos nos últimos anos para investir em inovação.” Além disso, diz ele, há espaço para as empresas brasileiras no setor de alimentos, que podem ajudar o México a enfrentar o problema da obesidade da população, e também para os laboratórios farmacêuticos.

“Está na hora de discutirmos a sério a liberalização comercial”, arrematou Veiga. O especialista acha que, se com o México “há a possibilidade real de fazer um acordo comercial com alguma relevância para a economia do Brasil, com a União Europeia essa possiblidade não existe, e muito menos com os EUA”. Isso porque os americanos terão primeiro de resolver o que fazer com o TPP, que reúne países muito diversos entre si, e é rejeitado tanto por Trump quanto por Hillary.

O especialista lembrou que, na sua posse, em maio, o chanceler José Serra defendeu acordos comerciais mas descartou uma liberalização unilateral. “Se achamos que comércio é relevante, a discussão da liberalização unilateral tem de ganhar espaço”, concluiu Veiga. Tem chão.

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