Na Rússia, FHC critica a conversibilidade

É difícil marchar contra o bom senso’, disse o presidente a empresários em Moscou

 

MOSCOU – O presidente Fernando Henrique Cardoso criticou ontem, de forma contundente, o regime da conversibilidade, do qual a Argentina acaba de sair depois de dez anos. “É muito difícil um país marchar contra o bom senso por muito tempo”, disse, referindo-se ao desfecho na Argentina. “Vocês chamam de mercado. Eu, que sou cartesiano, chamo de bom senso.” Falando a uma platéia de 120 empresários – dos quais, 70 brasileiros -, o presidente acrescentou: “Temos de acreditar e eu acredito na Argentina, que tem recursos humanos extraordinários”.

O presidente falou no encerramento de um seminário de empresários, no Grand Hotel Marriott, em Moscou. Pela manhã, em rápido passeio pela Praça Vermelha, sob frio de zero grau e uma neve fina, Fernando Henrique havia dito que o Brasil ajudaria a Argentina. E que o presidente do Banco Central, Armínio Fraga, ia ontem a Buenos Aires para “discutir formas de financiar o comércio com a Argentina e o Chile”.

Quanto aos riscos de contágio da economia brasileira pela crise argentina, Fernando Henrique observou que, “por sorte, os mercados foram mais competentes”, ao perceber que “os fundamentos da economia são sólidos no Brasil”.

“Fundamentos sólidos são um termo vago. Aqui, refiro-me a um regime fiscal muito duro, que me custou a popularidade, mas nos deu tranqüilidade”, explicou o presidente. “O governo não gastou mais do que arrecadou. É verdade o que dizem os empresários: arrecadou muito. Mas mantivemos a saúde financeira”, disse o presidente, acrescentando que conversara na véspera sobre esse tema com o presidente russo, Vladimir Putin, e constatou que ele também tem esse tipo de preocupações.

O presidente ressaltou que crises e ciclos econômicos são parte da vida.

Lembrou ter enfrentado em 1994, a do México, quando era ministro da Fazenda; a asiática em 1997, a russa em 1998, a “nossa própria” em 1999 e a argentina em 2001. “Isso vai continuar assim”, previu, pelo menos até se reduzir o patamar de volatilidade dos capitais, numa referência à campanha que faz por controles sobre o fluxo de capitais internacionais.

Como forma de diminuir a dependência dos capitais externos, Fernando Henrique defendeu a ampliação do comércio. “A economia brasileira é relativamente fechada.” Disse ter contado aos russos que, no ano passado, o Brasil celebrou um superávit de US$ 2,6 bilhões. “É ridículo. A Rússia tem superávit de US$ 60 bilhões”, montante que supera o volume total das exportações brasileiras.

“Exportamos apenas 10% de tudo o que produzimos”, lamentou, considerando um Produto Interno Bruto na casa dos US$ 600 bilhões. “Depende da cotação do dólar. Parece que expandimos 20% nos últimos dias”, ironizou, referindo-se à valorização do real frente ao dólar. “O que mostra a inconsistência desses dados.”

O inspirado discurso do presidente arrancou risos só dos brasileiros e dos poucos russos que entendiam português – o intérprete traduzia o discurso preparado previamente, que o presidente abandonou desde o início e improvisou. No meio do discurso, uma jornalista brasileira percebeu e avisou um funcionário do Itamaraty. Só então o intérprete passou a traduzir o que o presidente de fato estava dizendo.

Fernando Henrique ponderou que países grandes, como Brasil, China e Índia “vão continuar relativamente fechados”, por causa dos vastos mercados internos. “Mas temos de aumentar o comércio, até porque precisamos de tecnologia e dinamismo e da comparação com a qualidade dos produtos de outros países.”

O presidente procurou destacar a complementaridade das economias russa e brasileira, que, até agora, tem sido exercitada no âmbito dos produtos primários, com o Brasil exportando carnes, açúcar e café e importando fertilizantes. Segundo Fernando Henrique, o Brasil “tem muito o que aprender com a Rússia em matéria de tecnologia, sobretudo nas áreas mais pesadas”, como a dos bens de capital (maquinários).

“Talvez os russos possam aprender com nossa capacidade de aumentar o consumo, de distribuição dos produtos, de marketing, de convencer as pessoas a comprar do que não precisam”, estimou, provocando risos de novo. E ressaltou também a sofisticação do sistema bancário brasileiro, forjada no passado inflacionário. Fernando Henrique disse que o Brasil teve uma “quase revolução agrícola”, ao atingir a marca dos 100 milhões de toneladas de grãos por ano.

Afirmou ter sido Putin, no encontro que tiveram no Kremlin, segunda-feira, que lhe chamou a atenção para o fato de o Brasil já ser o terceiro maior produtor de grãos do mundo, atrás apenas dos EUA e da China. Acrescentou que a pecuária brasileira avançou muito, incorporando técnicas da biogenética, e garantiu a ausência de problemas fitossanitários.

“Somos também capazes de produzir jatos regionais. Precisamos avançar em outros tipos de aviões. Por que não produzimos juntos, aqui e lá, em joint ventures?”, perguntou, numa referência à percepção do governo brasileiro de que, hoje em dia, mais do que comprar ou vender, interessa instalar fábricas nos países parceiros. “Por outro lado, por razões geopolíticas, não há nada que nos afaste”, argumentou. “Não temos por que termos medo um do outro, até porque nossas fronteiras estão muito longe e isso ajuda a evitar tensões.”

Fernando Henrique, que tomara vodca com limão no Café Glória, dentro das galerias Gum, na Praça Vermelha, concluiu o discurso dizendo: “Falei com liberdade, que devo à vodca”. E propôs um brinde com cachaça brasileira, “que não é tão pura quanto a vodca, mas que aspira aproximar-se de sua pureza algum dia”. “Viva a Rússia.”

Hoje o presidente embarca para Kiev, capital da Ucrânia, dando continuidade à sua visita de sete dias à Rússia e à antiga república soviética. Às 11 horas (hora de Brasília) participa de cerimônia oficial e depois se reúne com o presidente ucraniano, Leonid Kutchma, com que assina uma série de acordos bilaterais, especialmente para a troca de tecnologias na área espacial.


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