População teme maior empobrecimento

Argentinos viam a paridade entre peso e dólar como um escudo contra caos econômico 

BUENOS AIRES — Os argentinos foram dormir ontem à noite com uma incômoda sensação. Hoje, o dinheiro que têm nos bolsos e nas contas bancárias, assim como seus salários e rendas, já não valem o que valiam. A expectativa em relação ao programa econômico que o presidente Eduardo Duhalde deve anunciar hoje, no entanto, envolve um tipo de ansiedade ainda maior do que a relação matemática entre o peso e o dólar: ao longo de uma década, a paridade com a moeda americana simbolizou, para os argentinos, a proteção contra a hiperinflação e o caos econômico e social dela decorrente.

 “Como estamos nos preparando? Somos assalariados. Não há nenhuma forma de preparação”, diz Fernando Rosbaco, que trabalha como operador de rádio do serviço público de ambulâncias de Buenos Aires. Ele e a mulher, María de Carmen López, professora de história numa escola pública de La Matanza, na Grande Buenos Aires, têm uma renda familiar de 1.600 pesos, até ontem suficientes para sustentar o casal e os dois filhos.
É bem verdade que 13.º salário e outros benefícios não vinham sendo honrados, e cerca de 30% do pagamento era em bônus, não em dinheiro. Também é verdade que, desde o mês passado, só se podia sacar US$ 1 mil por semana. “Mas se ia sobrevivendo”, pondera Rosbaco. “Para nós, nada disso mudou muito a situação. O grande problema, agora, é o grau de incerteza.”
A situação de Eduardo Jogan é diferente da de assalariados como Rosbaco e María Carmen, que foram capazes de manter seus empregos. Jogan, corretor de planos de saúde, já vinha sendo severamente castigado pela recessão de mais de três anos. “Não se vende nada”, resume. “Ninguém tem dinheiro.” E como se pagam as contas? “Fazendo milagres. A gente paga algumas, outras não.”
O fantasma de uma inadimplência generalizada ganha vida com a perspectiva de desvalorização do peso, já que os compromissos estão denominados em dólares. Uma eventual “desdolarização”, por outro lado, representará uma quebra de contrato para todos aqueles que têm custos e expectativas de ganho vinculados ao dólar, como as empresas multinacionais que assumiram os serviços públicos privatizados.
De acordo com um levantamento do Banco Santander Central Hispano, as empresas espanholas instaladas na Argentina perderiam mais de US$ 3 bilhões com a desdolarização. A expectativa dessas empresas é cobrar do governo a diferença que não puderem repassar para as contas — um pouco como o que aconteceu no Brasil, com o racionamento de energia. Não é uma boa perspectiva, para um país onde a origem dos males é o pesado déficit público.
Algumas lojas de eletroeletrônicos e outros produtos importados em Buenos Aires aumentaram os preços em 30% a 40%, que é o patamar previsto para a desvalorização do peso frente ao dólar. Outras só aceitavam pagamentos com cartão de crédito, com o preço fixado em dólares. Por sinal, o comportamento dos argentinos em relação ao cartão de crédito indica o grau de confusão. Alguns resolveram pagar logo os extratos, com receio da desvalorização do peso. Outros preferiram aguardar, na expectativa de ganhar com ela.
As regras mudaram no meio do jogo. A definição dos muitos detalhes das novas normas dará, a cada um, a dimensão das perdas. Ontem, a única certeza dos argentinos era a de que hoje amanheceriam mais pobres.

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