Após dez anos, a mãe de todas as reformas é feita a toque de caixa

Projeto aprovado pelo Senado deve passar pela Câmara, cuja proposta de reforma política tem poucas chances de prosperar

 

Há pelo menos dez anos – desde o primeiro mandato do presidente Fernando Henrique –, a reforma política é citada como prioridade número 1, a mãe de todas as reformas, capaz de gerar um Congresso mais sério, mais representativo, que poderia então parir as outras reformas necessárias, legislar e fiscalizar com qualidade e coerência. Há dez anos ela espera sua vez.

A explicação é óbvia: por que os parlamentares iam querer mudar as leis que lhes permitiram se eleger? Foi preciso uma enorme crise de legitimidade – deflagrada pelo escândalo do mensalão – para o Congresso se mexer. Mais precisamente, o Senado, uma casa muito mais ordenada do que a Câmara, que, no dizer de um senador líder de bancada, “é a cara do Severino”.

A reforma eleitoral aprovada na quinta-feira na Comissão de Constituição e Justiça do Senado, a toque de caixa, vai agora para a Câmara, que tem de votá-la até 30 de setembro, se quiser que as regras novas vigorem na eleição do ano que vem. Muito longe de serem “a” reforma política, essas regras barateiam e encurtam as campanhas. São amplamente aceitas, embora haja ressalvas.

“Essa proposta tem um eixo: acabar com o caixa 2”, entusiasma-se o líder do governo no Senado, Aloizio Mercadante (PT-SP). “Cortamos drasticamente as despesas de campanha.” A força do projeto, assinado pelo presidente do PFL, senador Jorge Bornhausen (SC), está em sua feição suprapartidária. “Ele foi construído a muitas mãos”, diz Mercadante. “É um grande avanço.”

Na Câmara, PFL, PSDB, PT, PTB, PL e PP, os maiores partidos da Casa, devem votar maciçamente a favor da proposta do Senado. Alguns deputados têm reparos, mas nada de substancial. Luiz Antonio Fleury Filho (PTB-SP), por exemplo, autor de um projeto de lei semelhante, vai propor aumentar a pena para quem recebe doações ilegais, de 3 a 5 anos, como prevê o projeto, para 4 a 10 anos, e multa até 100 vezes o valor doado ilegalmente, em vez de R$ 21.282 a R$ 53.205.

O deputado Fernando Gabeira (PV-RJ) não concorda com duas das premissas do projeto: de que cenas de estúdio são mais baratas que externas e de que “a imagem é manipuladora, e a palavra, não”. “Vou tentar derrubar isso”, diz Gabeira, referindo-se à proibição de filmagens externas. Mas ele concorda que só devam aparecer, no horário eleitoral gratuito, candidatos e filiados.

A ex-prefeita de São Paulo Marta Suplicy (PT), que deve disputar eleições no ano que vem, vê com bons olhos a redução dos gastos, mas não a das imagens. “As mudanças nas regras das campanhas, reduzindo significativamente os gastos, são importantes para promover pleitos mais democráticos, evitar o abuso do poder econômico e a utilização de recursos financeiros não declarados”, escreveu ela, num e-mail ao Estado. “Isto não significa que se deva cercear a veiculação das propostas e das informações necessárias ao esclarecimento dos eleitores, inclusive utilizando imagens externas.”

“Fomos de um extremo a outro na TV”, reconhece o senador José Jorge (PFL-PE), relator do projeto. “De produções ‘dudamendoncianas’ ao estúdio. Os programas poderão ter pouca atração para o eleitor. Mas o momento exigia uma resposta rápida.”

A Câmara tem a sua proposta, que envolve financiamento exclusivamente público de campanha e o voto em listas partidárias. É mais profunda e, por isso mesmo, praticamente impossível de aprovar. O relator desse projeto na Comissão Especial de Reforma Política, deputado Ronaldo Caiado (PFL-GO), acha que a proposta do Senado “pode vir apensada” ao seu projeto. “Não é um projeto estruturante”, diz Caiado sobre a proposta do Senado.

O mais provável é que o projeto do Senado passe pela Câmara sozinho e o do deputado fique encalhado. Os líderes de bancadas concordaram, na quarta-feira, em colocar o projeto de Caiado em votação no plenário, livre de obstruções. Os pontos de discordância serão objeto de destaques, votados nominalmente. Não serão poucos.

OBJEÇÕES

O vice-líder do PL na Câmara, deputado Lincoln Portela (MG), diz que o partido vai votar a favor da proposta do Senado, mas não concorda com o financiamento público de campanha e com o voto em lista fechada, contidos no projeto da Câmara. “Talvez para 2008”, adia Portela. “Em meio a esse descrédito da classe política, querer introduzir da noite para o dia essas medidas, com os partidos definindo as listas e o Estado tirando dinheiro de outras coisas para financiar políticos?”, duvida o deputado.

A visão é parecida no PTB. “No meio de uma crise que envolve os partidos, como pedir que o eleitor vote no partido, não no candidato?”, pergunta o deputado Luiz Antonio Fleury Filho (PTB-SP). “Que eleitor se anima a pagar campanhas nessas circunstâncias?” Fleury esclarece que, noutra conjuntura, poderia ser a favor do voto em lista. Já ao financiamento público, se opõe por princípio.

No PP, o deputado Luís Carlos Heinze (RS) considera bem-vindo o controle de gastos contido na proposta do Senado: “Não tenho recursos. A mim, beneficiaria.” Mas é contra o financiamento público exclusivo. “Tem de haver um jeito de controlar melhor o caixa 2, sem botar dinheiro público nas campanhas, num país que já tem tantas necessidades.” Heinze também é contra a votação em lista: “Sei que fortalece os partidos, mas o Brasil ainda não tem maturidade para isso funcionar.”

HORA DE MUDAR

Muitos parlamentares acreditam que a hora é essa. “Reformas profundas como essa só acontecem em momentos de crise”, diz o deputado Rubens Otoni (PT-GO), relator da reforma política na Comissão de Constituição e Justiça. “Se está tudo bem, ninguém vai querer mudar.”

“A reforma eleitoral aprovada no Senado é útil, mas extremamente limitada”, pondera o líder do PSDB na Câmara, Alberto Goldman (SP). Por outro lado, ele considera muito difícil que a proposta da Câmara, “uma reforma política de verdade”, possa ser aprovada. A crise ajuda: “Só em momentos de crise a gente consegue fazer modificações.” Desse silogismo, Goldman concorda que a conclusão é: pode ser preciso uma crise ainda mais profunda para fazer uma reforma política para valer.

Para a deputada Luiza Erundina (PSB-SP), não é hora de querer aprovar uma reforma política. A deputada lembra que o projeto da Câmara, no qual Ronaldo Caiado trabalhou por dois anos e meio, foi discutido durante um ano só na Comissão de Cidadania, em 2003, quando foi objeto de dezenas de audiências públicas. “Isso não é matéria simples, que se pauta, discute e aprova.”

“O do Senado é pior ainda” acha Erundina. “Querer maquiar com pontos aqui e acolá é ilusão. Gera expectativa que se frustra.” Erundina não vê credibilidade no Congresso para promover a reforma. “Quem vai votar essa proposta?”, pergunta. “Os que estão sendo acusados?”

Mesmo o que parece simples não é. O cientista político Bruno Speck, da Unicamp, alerta que o encurtamento da campanha pode reduzir as chances dos candidatos sem mandato, que têm menos visibilidade do que os adversários com mandato. “O encarecimento da campanha, por si só, não é sinal de deterioração da democracia, mas de mais competitividade”, analisa o especialista.

O deputado Luiz Antonio Fleury Filho (PTB-SP) também acha que a Câmara precisa de mais tempo para discutir a reforma. Ele apóia a proposta de emenda do deputado Ney Lopes (PFL-RN), de prorrogar de 30 de setembro para 31 de dezembro o prazo para mudanças nas regras eleitorais que valham para as eleições de 2006.

“Além da punição dos envolvidos, essa crise só terá um resultado bom se tiver como decorrência uma reforma política”, diz o deputado José Eduardo Cardozo (PT-SP). Ele admite, no entanto, que a tendência não é essa. Cardozo acha que a proposta que vem do Senado traz regras “muito boas, mas muito aquém do necessário”.

“Um dos maiores erros do governo Lula foi ter engavetado a reforma política”, diz o deputado Chico Alencar, da ala esquerda do PT do Rio. “Devia ser a primeiríssima das reformas. O governo ficou refém de um esquema político-eleitoral degenerado, que é a porta da corrupção, da mercantilização do voto e do aluguel de mandatos. Se não se mexer nisso, não tem jeito.”

Dizem que o ótimo é inimigo do bom. Ao que tudo indica, o projeto que vem do Senado será recebido na Câmara como o que dá para fazer neste momento.


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