Arrendar terra, alternativa para desapropriação

Bolsa de Arrendamento tem sido opção para quem sabe plantar, mas não tem onde

 SANTO ANASTÁCIO – Ivaldo Novaes Ferreira sempre foi um trabalhador rural sem-terra. Mas nunca se deixou recrutar para acampamentos do Movimento dos Sem-Terra (MST) ou de seus concorrentes. Nascido na roça, onde aprendeu o ofício de reformador de pasto, Ivaldo, de 56 anos, tem ganhado a vida como arrendatário. Isso não o fez rico: “Tem ano bom e ano ruim.”

Juntando o dinheiro ganho nos anos bons, conseguiu comprar um trator, uma caminhonete velha e dois pedaços de terra, de 46 hectares e de 36. “Mas a área é muito pequena para eu e meus dois filhos tocarmos. Não dá para sobreviver.”

Até aqui, Ivaldo só encontrava serviço pequeno para arrendar: 10 hectares aqui, 20 ali, e por no máximo um ano. Com isso, não conseguia aumentar a renda nem investir em máquinas. No início do ano, ouviu falar da Bolsa de Arrendamento e Parcerias, em Santo Anastácio, 580 quilômetros a oeste de São Paulo. A Bolsa é procurada por quem, como Ivaldo, sabe trabalhar, mas não tem terra, e por quem tem terra, mas não tem como fazê-la produzir.

É o caso de uma viúva que se viu sozinha com 193 hectares em Presidente Venceslau, no Pontal do Paranapanema. Ivaldo e ela firmaram um contrato de 5 anos, seguindo um modelo da Bolsa. O preço do arrendamento foi estipulado em 10 sacas de soja por alqueire paulista (2,42 hectares) ao ano, divididas pelos meses do ano. Traduzindo: uma renda mensal de R$ 2.666 para a viúva, que ele começou a pagar em fevereiro.

Ivaldo, acostumado a ser arrendatário por períodos curtos, perguntou à coordenadora da Bolsa, Anna Cláudia Berno, se “o patrão” ia deixá-lo fazer o que quisesse. “Claro”, riu ela. “Seu Ivaldo entende tudo de agricultura, mas sua auto-estima estava em baixa, de tanto se submeter a arrendamentos inviáveis”, conta ela. “De repente, ele descobriu que não era mais um simples reformador de pasto. Era um empresário.”

Seu primeiro contrato de longo prazo permitiu a Ivaldo pedir um empréstimo no Banco do Brasil: pela linha de crédito Pró-Solo, tirou R$ 60 mil, para pagar em 5 anos, com juros de 8,75% ao ano. Seus sítios serviram de garantia. Ele comprou uma plantadeira e semeou a terra com 60 hectares de milho – que começará a colher daqui a duas semanas – e 133 de feijão.

A Bolsa de Arrendamento, criada em março do ano passado, é responsável por um salto no plantio de soja da região: de 20 mil hectares, em 2002, para 45 mil este ano e 100 mil na safra de 2004. Ela também tem mediado contratos de algodão, amendoim, cana e eucalipto.

Com três funcionários e uma estrutura mínima, que custam R$ 7 mil por mês, e patrocinada por comerciantes de produtos agrícolas, a Bolsa tem atendido gratuitamente uma média de 12 produtores rurais por dia. Gente de São Paulo, Paraná e Rio Grande do Sul.

O sistema atraiu até a atenção do MST. Anna Cláudia conta que, antes de ser preso, José Rainha, líder no Pontal, a vinha procurando constantemente, para discutir a aplicação da Bolsa para os sem-terra. A alternativa não emociona tanto Wesley Mauch, número 2 do MST no Pontal. “Para quê, se esta região tem 1,3 milhão de hectares de terras devolutas, para serem destinados à reforma agrária?”

Não por muito tempo. O número deve cair dramaticamente, “inviabilizando a reforma agrária no Pontal”, na avaliação do próprio Mauch, se a Assembléia Legislativa aprovar um projeto que reconhece os títulos de terras públicas com menos de 500 hectares na região.

Mauch também não vê como o arrendamento poderia ser posto em prática para a agricultura familiar e para o caso específico dos “sem-terra”. Isso porque a tradição, no Brasil, é de contratos de prazo muito curto.

É a mesma restrição que tem o ministro do Desenvolvimento Agrário, Miguel Rossetto. “Há necessidade de alguém disposto a arrendar por 20 a 30 anos e não temos essa cultura no País para responder a um programa de reforma agrária”, disse ao Estado. Para ele, o arrendamento pode ter um papel “complementar” na reforma agrária: “O Estado não pode abrir mão de uma política ativa de busca e aquisição de terras, por meio da desapropriação.”

Anna Cláudia acha que o Estado pode ser ativo em relação aos arrendamentos, dando-lhes um respaldo institucional e regulatório que permita contratos de longa duração. E explica que um dos motivos pelos quais os proprietários não se sentem encorajados a arrendar suas terras por mais tempo é justamente o pavor de perdê-las para sem-terra que reivindiquem sua posse. A coordenadora conta que, quando as invasões recrudescem, a procura pela Bolsa diminui.

Ubaldino Dantas Machado, ex-diretor da Embrapa e assessor da Federação dos Trabalhadores da Agricultura do Estado de São Paulo (Fetaesp), ácido crítico do modelo atual de reforma agrária, também tem dúvidas sobre o uso do sistema no Pontal. “A Bolsa é uma idéia excelente, a questão é como operacionalizá-la. Em termos globais, não funciona, porque a região se está descapitalizando.”

Já Francisco Graziano Neto, ex-presidente do Incra e ex-secretário da Agricultura de São Paulo, acredita que o sistema seja uma boa alternativa à desapropriação, até porque, na sua opinião, não há mais latifúndios improdutivos que reúnam condições de viabilidade de assentamento: infra-estrutura e acesso aos mercados e a serviços públicos. Rossetto e o MST acham que há.

O arrendamento pode não ser a panacéia para os problemas fundiários do Brasil. Mas ajuda a mostrar que a terra em si já não é fonte de riqueza. Pode ter sido no período da inflação alta, quando servia de reserva de valor. Agora, o que importa é o que se pode fazer com ela.

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