Autogestão reduz custo com plano de saúde

Lourival Sant’Anna – Segunda-feira, 27 de abril de 1998 
Sistema usado em Araras, em São Paulo, não prevê exclusões de doenças, exames e procedimentos

ARARAS – Enquanto no Congresso se discutem exclusões de cobertura nos planos de saúde, aumentos de mensalidades e prazos de carência, parte da população de Araras vive uma realidade bem diferente. Cerca de 17 mil dos 100 mil moradores da cidade estão associados ao Pró-Saúde, sistema de autogestão sem fins lucrativos, que conseguiu criar um plano de saúde não só acessível para os trabalhadores, mas também sem distinções de tratamento e sem exclusões de doenças, exames e procedimentos.

Em março, pelo rateio das despesas, coube a cada conveniado mensalidade de R$ 38,00. O titular pode não pagar nada ou pagar grande parte desse valor, dependendo do acordo que tenha com a empresa em que trabalha. A tendência é de queda, no entanto, porque as mensalidades dos últimos meses foram oneradas pelo nascimento prematuro de uma criança em estado grave, que ficou 45 dias na Unidade de Terapia Intensiva (UTI), num tratamento que custou mais de R$ 60 mil. A despesa total foi de R$ 360 mil no mês passado.

O Pró-Saúde presta assistência aos funcionários de 140 empresas, de micros até grandes companhias de porte como Nestlé ou Telesp. Por enquanto, ainda não se pode entrar como pessoa física, embora o diretor-administrativo, Wilson Reinhardt Filho, considere “inexorável” a sua incorporação. “Várias pessoas abrem firmas só para filiar-se ao Pró-Saúde”, orgulha-se.

O Pró-Saúde surgiu há quatro anos, de uma cisão no São Luiz Saúde, convênio local, pertencente à Santa Casa de Misericórdia. O São Luiz é exemplo de um esquema de sobrevivência criado por várias Santas Casas no Estado de São Paulo (ver abaixo). O convênio privado ajuda a sustentar a parte filantrópica.

Empresários insatisfeitos com o desempenho do São Luiz criaram o Pró-Saúde em 1994. A organização não tem dono nem cotas. As empresas podem integrar o sistema de duas maneiras: como associadas, rateando as despesas eqüitativamente, segundo o número de funcionários associados; ou como cadastradas, pagando ao Pró-Saúde o custo dos atendimentos feitos a seus funcionários. Em cada categoria, estão 70 empresas. Na primeira, há 9 mil pessoas conveniadas; na segunda, 8 mil.

Somente as associadas votam na assembléia-geral, que elege nove empresas – que indicam seus representantes – para o Conselho da Administração e três para o Conselho Fiscal. As micro e pequenas empresas estão reunidas na Associação Comercial, Industrial e Agrícola de Araras, que tem um voto.

Dentre as cadastradas, mas não associadas, estão a Telesp, a Sabesp, a Cesp, as Caixas Econômicas Federal e Estadual, o Banco do Brasil e o Sesi, que têm seus próprios planos de saúde para os funcionários.

Normalmente, os sistemas de autogestão, que reúnem 8 milhões de pessoas no Brasil, pertencem a empresas, sejam estatais – o que é mais comum – ou privadas. Reinhardt estima que o Pró-Saúde seja caso único de autogestão para mais de uma empresa. Não é, também, cooperativa, ao estilo das Unimeds municipais. É pessoa jurídica sem fins lucrativos, que desfruta de isenções de impostos.

O Pró-Saúde tem um ambulatório, com as principais especialidades, e um hospital, com 23 leitos. Todos os consultórios têm computador, com prontuários eletrônicos dos pacientes. O médico tem diante de si, na tela, o histórico do paciente: por que médicos passou, que remédios tomou, etc. São cerca de 3 mil consultas por mês. Três laboratórios de Araras são conveniados, mas, como todo o resto, se for necessário serviço particular, o Pró-Saúde paga.

Todos os quartos do hospital têm ar-condicionado, televisão e telefone. As condições de internação, assim como todas as outras, são idênticas para todos, segundo Reinhardt: do dono de empresa ao funcionário mais humilde.

São cerca de 90 internações por mês. Tratamentos mais complexos são feitos em outros hospitais da região. Além da ambulância, com UTI completa, o Pró-Saúde tem um carro com motorista para levar os pacientes para consultas em outras cidades.

Reinhardt cita o exemplo de um paciente com um problema no joelho. Dois ortopedistas propuseram condutas diferentes. O paciente quis uma terceira opinião. Foi trazido para São Paulo e atendido “por um professor”, em consulta particular, com tudo pago pelo Pró-Saúde.

“Quando é assim, telefonamos antes, conversamos com o médico, geralmente conhecido nosso, e perguntamos: quanto você faz para a gente uma consulta?”

Isso vale também para os tratamentos caros. Como o Pró-Saúde é bom cliente, pagando em dia, diz Reinhardt, consegue negociar preços e prazos – evitando que uma despesa alta tenha impacto grande sobre o rateio de um mês.

Uma farmácia com 120 itens básicos vende remédios para os conveniados a preços 25% mais baixos que no mercado, segundo Reinhardt. O Pró-Saúde compra diretamente dos fabricantes e vende sem lucros, adicionando apenas o imposto sobre a venda.

Não há carência para os trabalhadores que aderem ao Pró-Saúde até 30 dias antes de serem contratados. O plano cobre tudo imediatamente, inclusive partos. Para os que aderirem mais de 30 dias depois de contratados, há carência de 100 dias para cirurgias e de 280 para partos.

O Pró-Saúde tem 36 médicos, 24 enfermeiros e atendentes de enfermagem, todos com carteira assinada, assim como 39 funcionários administrativos, recepcionistas, trabalhadores na limpeza, manutenção, lavanderia, etc. “É uma administração bem enxuta”, diz Reinhardt. Pós-graduado em administração hospitalar, ele trabalhou 17 anos no Hospital das Clínicas de São Paulo.

Dos 36, apenas 7 médicos moram em Araras. Isso porque a Unimed, que reina no município, assim como em muitas outras cidades do interior, não permite que seus médicos trabalhem para o Pró-Saúde. A Unimed mantém convênio com o São Luiz, que é o lado privado da Santa Casa, e o pressiona a não permitir que seus médicos trabalhem para o Pró-Saúde. Mais que isso, a Unimed, sob ameaça de suspender o convênio, não permite que o hospital faça convênio com o Pró-Saúde.

As pressões foram confirmadas ao Estado pelo secretário da Saúde de Araras, Ênio Vitali, e pelo diretor-clínico da Santa Casa, o deputado estadual Nelson Salomé (PL). O resultado é que o Pró-Saúde “importa” médicos de toda a região. Alguns já instalaram-se em Araras, mas, com o bloqueio imposto pela Unimed, torna-se difícil formar clientela própria ou mesmo trabalhar em outros hospitais, além do Pró-Saúde.

Reinhardt critica a Unimed por essa conduta ilegal, segundo ele, e o São Luiz por se curvar à pressão. “Os leitos da Santa Casa ficam ociosos, enquanto nós temos de mandar pacientes para outras cidades”, reclama o diretor do Pró-Saúde. “Será que a Santa Casa não precisa de dinheiro?”

O secretário Vitali acha que essa é uma fase de acomodação e, mais cedo ou mais tarde, espera que o São Luiz possa receber os pacientes do Pró-Saúde.

“Seria justo e lógico.” Já o diretor-clínico Salomé nega que haja grande ociosidade nos 280 leitos da Santa Casa e acha natural que o Pró-Saúde sofra bloqueio da parte privada do hospital. “Foram eles que quiseram sair do São Luiz”, diz o médico. “Eles não nos consultam ao tomar suas decisões.” Para ele, é uma problema empresarial.

Salomé enfatiza que os pacientes do Pró-Saúde que eventualmente necessitam da Santa Casa são atendidos de graça, como quaisquer outros. E expõe dramas parecidos com os de outras Santas Casas do País: diz que ganhou uma UTI infantil “completa” da Nestlé, mas não pode ativá-la, por falta de pagamento da prefeitura que, segundo ele, está em débito com o hospital.

Em quase tudo, Araras é um microcosmo do Brasil: na falta de coordenação entre os diversos hospitais e esferas de atendimento hospitalar, na forte interferência dos interesses políticos, na exclusão da maioria dos trabalhadores informais dos contratos de planos – mais de 80% dos quais são firmados com empresas. Numa coisa, Araras é incomum: quase um quinto de sua população não é obrigado a escolher entre um plano caro e um plano ruim.

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