Constituição contradiz-se sobre direitos

Uma vez estabelecido, teto passaria a impor-se, segundo a lei, sobre os já aposentados

A grande dificuldade de consertar um sistema previdenciário está no fato consumado que as aposentadorias e pensões representam, não importando se foram concedidas de maneira precoce, como as aposentadorias por tempo de serviço; por motivo absurdo, como as pensões para as filhas solteiras dos militares; ou em valores incompatíveis com as contribuições do beneficiário e com a realidade brasileira, como as aposentadorias especiais e aquelas concedidas ao topo da pirâmide do funcionalismo.

Em tese, essas aposentadorias constituiriam direitos adquiridos. Entretanto, a Constituição não é cristalina em relação a isso. O artigo 3º da Emenda Constitucional nº 20, promulgada em dezembro do ano passado, diz que “são mantidos todos os direitos e garantias aos servidores e militares, inativos e pensionistas, aos anistiados e aos ex-combatentes, assim como àqueles que já cumpriram os requisitos para usufruírem tais direitos, observado o disposto no artigo 37, XI”.

O inciso XI do artigo 37 reserva uma surpresa aos já aposentados e pensionistas que recebem benefícios altos: “(…) os proventos, pensões ou outra espécie remuneratória, percebidos cumulativamente ou não, incluídas as vantagens pessoais ou de qualquer outra natureza, não poderão exceder o subsídio mensal dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF).”

No Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, o artigo 17 põe mais lenha na fogueira: “(…) os proventos de aposentadoria que estejam sendo percebidos em desacordo com a Constituição serão imediatamente reduzidos aos limites dela decorrentes, não se admitindo, neste caso, invocação de direito adquirido ou percepção de excesso a qualquer título.”

Entretanto, o artigo 60 estabelece que “não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir os direitos e garantias individuais.” Os juristas costumam concordar em que os benefícios já recebidos pelos aposentados e pensionistas ou aqueles aos quais os segurados já têm direito, mesmo que ainda não estejam usufruindo, estão incorporados a seu “patrimônio jurídico”, constituindo “direito individual”.

“A emenda foi muito mal feita”, conclui o jurista Dalmo de Abreu Dallari. “Foi má-fé, para criar a idéia de que todos os direitos adquiridos seriam respeitados.” (Mas abrindo brechas para violá-los.) “O Supremo vai ter de apreciar essa matéria e dar solução.”

O jeitinho brasileiro, no entanto, segue protelando o enfrentamento da questão. Os chefes dos três Poderes teriam de reunir-se para definir o teto a que se refere a emenda: se o salário de R$ 10.800, pago pela função de ministro do STF, ou se o de R$ 12.720, recebido por três ministros que acumulam funções no STF e no Tribunal Superior Eleitoral.

Pela Constituição, os salários dos juízes vão descendo, a partir dos ministros do STF, segundo a hierarquia, em diferenças de no máximo 10% e no mínimo 5% em relação ao patamar imediatamente superior. A fixação do teto em R$ 12.720 causaria aumentos generalizados no Judiciário. Não havendo teto, aposentados e pensionistas da União podem continuar recebendo mais.

O jurista Celso Bastos considera que seria difícil corrigir aposentadorias altas e precoces que, embora “de pouca legitimidade”, foram concedidas por medidas juridicamente corretas. Haveria dois problemas: a proteção do direito adquirido e a dificuldade burocrática de reabrir processos individuais – e, com eles, longas batalhas na Justiça.

Afinal, até mesmo a cobrança de contribuições dos inativos, que deve ser estabelecida por nova emenda preparada pelo governo, pode esbarrar em interpretação do STF, segundo a qual os inativos usufruem do direito adquirido de não ter seus benefícios onerados por desconto que não estava previsto, quando começaram a recebê-los.

“De maneira geral, acho que a Justiça tem entendido pouco a Previdência sob o ponto de vista doutrinário e tem-se apegado à letra fria da lei, muitas vezes mal redigida e que tem criado distorções fantásticas”, indigna-se o ex-ministro da Previdência e Assistência Social Reinhold Stephanes. O ex-ministro cita dois exemplos: a aposentadoria de R$ 30 mil de suposto ex-combatente que nunca foi à guerra e de R$ 25 mil de jornalista do interior do Acre que hipoteticamente teria chegado a diretor de grande jornal, se não tivesse sido perseguido pela ditadura. “Como considerar direito adquirido o que em qualquer outro país seria apenas um absurdo?”

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