Crianças ainda sustentam famílias, com ou sem o dinheiro do governo

Pais fazem contas para ver se vale a pena receber bolsa do Peti ou pôr para trabalhar. Alguns optam por ambos

 

MARAGOGIPINHO, BAHIA – Sob o sol impiedoso do verão baiano, o menino senta-se na curva da estrada poeirenta na entrada de Maragogipinho, vilarejo de 3 mil pessoas no encontro do Rio Jaguaripe com o mar, não muito longe de onde o Brasil foi descoberto. O menino de 14 anos, a pele negra brilhando de suor, descansa junto a seus pés o feixe de lenha que vinha carregando, enquanto espera a madrasta, que se atrasou cortando a lenha no mato.

“Este é para o fogão a lenha”, explica o menino. “Mas às vezes cato lenha e vendo para as olarias, por R$ 2,50 o feixe.” A madrasta finalmente se junta ao enteado, também trazendo um feixe de lenha e um facão: “Às vezes vende, às vezes não, fica na vontade. Às vezes, vendo cinco pacotes de uma vez, e vou buscar mais cinco. Fico assim, aventurando.” Por mês, a lenha rende uns R$ 50.

Os dois sobem a ladeira que vai revelando o casario de Maragogipinho, e, com ele, os feixes de lenha à venda nas calçadas, as crianças e mães sentadas na porta de cada casa, polindo peças artesanais de cerâmica. Finalmente chegam à casa, onde a filha de 13 anos está sentada à porta, polindo, ou “burnindo”, como eles dizem, com uma ponta de alicate e um pedaço de pano, cofrinhos de barro em forma de porquinhos. Nas casas vizinhas, a cena se repete, com crianças de até 6 anos trabalhando.

Os 94 oleiros do vilarejo – que cultiva a tradição da cerâmica trazida pelos jesuítas há três séculos – pagam de R$ 8 a R$ 10 por uma centena de porquinhos burnidos, dependendo do tamanho. A menina de 13 anos, que freqüenta a 3ª série de tarde, consegue burnir 50 por semana. “Se burnir sábado e domingo, quando não tá com preguiça, cada criança tira R$ 25 por mês”, calcula a mãe, que vive com o marido, que ganha R$ 200 por mês trabalhando numa fazenda, um casal de filhos dele e a filha dela.

CÁLCULOS

A família, que recebe R$ 95 do Bolsa Família, cadastrou os filhos no Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (Peti), que paga R$ 25 por criança na zona rural (e R$ 40 na cidade). Não foi contemplada. Mas a mulher tem dúvidas sobre se vale a pena o Peti, cuja condição é as crianças não trabalharem. “No verão, prefiro eles trabalhando para me ajudar.” No inverno, período chuvoso de seis meses a partir de junho, não se pode trabalhar porque a lenha não seca. “Aí vale a pena pegar o Peti.”

Ao redor do Brasil, mães e pais pobres fazem essa conta. Em Santa Rita de Ouro Preto, pólo de lavra e artesanato de pedra-sabão a 120 quilômetros de Belo Horizonte, várias crianças pedem para serem incluídas no Peti, por causa dos jogos e brincadeiras promovidos pelo programa, no turno em que não estão na escola. Mas os pais recusam, porque elas podem tirar mais que os R$ 25 por mês trabalhando numa oficina de artesanato ou ajudando em casa a carregar, cortar e lixar a pedra-sabão. Para além do cálculo financeiro, há ainda uma crença de que pôr os filhos para trabalhar é também educá-los (ver na página seguinte).

Muitos contornam o dilema simplesmente burlando a norma.

Quando o sol se põe detrás dos morros que margeiam a estrada entre Santo Antonio de Jesus e Muniz Ferreira, a 190 quilômetros de Salvador, crianças e adolescentes saem de suas casas no vilarejo do Salto da Onça, atravessam a rodovia e entram no aterro do Km 53, abastecido com o lixo de seis cidades da região. Ali, juntam-se aos adultos, disputando com os urubus e o trator que compacta o fétido monte de detritos, à cata de copos de plástico, latas para reciclar, comida para os porcos criados em seus quintais e algo mais: “Quando acha um bife bom, a gente come”, diz Nóia Bispo da Paixão, de 29 anos.

O quilo do plástico é vendido num entreposto de reciclagem a R$ 0,15 e o da lata, a R$ 0,10. Catador obstinado – o lixão fica aberto durante a noite, das 17 às 8 horas -, um rapaz de 16 anos conta que consegue tirar de R$ 20 a R$ 30 por quinzena. Ele não se lembra de quando saiu da escola. Mora com a mãe e cinco irmãos – um mais velho, de 18 anos, e os outros menores. Sua família não recebe nenhuma bolsa do governo.

Quando o repórter avança sobre o lixão na direção das crianças – cinco, nesse momento -, elas se afastam automaticamente, como se houvesse entre eles um campo magnético de pólos iguais. “Elas estão no Peti”, esclarecem os moradores, incluindo um irmão mais velho. “Têm medo de aparecer e perder a bolsa.” As crianças sabem que estão ali fazendo algo “errado”. “A gente grita, eles cobrem a cabeça”, diz Gildete Silva Santos, ajudante do Peti do Salto da Onça, descrevendo a luta para tirar as crianças do lixão. “A gente bate na porta das casas deles, diz que vai cortar o dinheiro, que aqui é melhor que aquele lugar sujo.”

Óbvio que o Peti, que atende 1 milhão de crianças e adolescentes no País, ganha muitas batalhas. Na casa do Salto da Onça alugada pela prefeitura de Santo Antonio de Jesus, são 24 crianças pela manhã (das 8 às 11 horas, com lanche e almoço) e 13 pela tarde (de 13 às 16 horas, com almoço e lanche). Antes de ingressar no Peti, todas ajudavam os pais a fazer fogos de artifício no quintal de casa, sob encomenda de atravessadores e fábricas da região, que terceirizam etapas da produção que requerem mão-de-obra intensiva, como envolver palitos de traque na espoleta ou encher trouxinhas de papel com as massinhas que estalam no chão.

EXPLOSÃO

Santo Antonio de Jesus, pólo de produção artesanal de fogos de artifício, ficou tristemente famosa em dezembro de 1998, quando uma fábrica explodiu, matando 64 pessoas, entre elas uma criança e 40 adolescentes. Nas favelas Irmã Dulce e São Paulo concentram-se as 42 famílias vitimadas, com três, quatro integrantes mortos ou feridos. Ninguém foi indenizado.

O dono da fábrica, Oswaldo Bastos Prazeres, ficou preso 24 horas e voltou para o negócio. Assim como outros empresários, ele terceiriza parte da produção nas mesmas favelas onde sempre encontrou mão-de-obra barata. Crianças e adolescentes ajudam as mães a fazer estalos, por R$ 0,50 o milheiro.

“Se eu sentar o dia inteiro, até 8, 9 da noite, faço 5 milheiros num dia”, conta uma mãe de 39 anos, que não chega a tirar R$ 100 por mês. Seu filho de 7 e sua filha de 4 ajudam. Seu bebê de um ano e sete meses às vezes escapa da vigilância e bota a mãozinha também, misturando a massa de estalo e os papelotes que já vêm recortados. “A menina faz igualzinho a mim”, orgulha-se a mãe solteira, que ganha R$ 25 do Peti, pelo filho de 7 anos, e estava recebendo R$ 15 do Bolsa Família até há oito meses, quando cortaram sem explicação.

O sustento vem das crianças.Com ou sem Peti e Bolsa Família, esse conceito não mudou. 


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