Doença preexistente: uma discussão infindável

O mercado a vê como condição de viabilidade financeira; os médicos desconhecem o conceito

 Muitos aspectos que indignam os representantes dos consumidores são vistos pelo mercado e pela agência como condição de possibilidade. Um exemplo é a carência de 24 meses de procedimentos de alta complexidade para tratar doenças preexistentes. “Para o consumidor não contratar só quando precisa”, denuncia Andrea Salazar. É exatamente o que Arlindo Almeida tem em mente. “A pessoa não tem que comprar plano quando está com câncer”, exemplifica o presidente da Abramge. “Carro avariado não pode fazer seguro.”

“Acho que a comparação com seguro de carro não cabe, mas, se não posso bater o carro, para que vou fazer seguro?”, indaga a presidente do CRM, Regina Parizi. “Se uma seguradora oferecer seguro de carro com seis meses de carência, está fora do mercado. É irônico fazer isso com o bem mais valioso.”

Almeida, pediatra, cirurgião e dono de um hospital em São Bernardo do Campo, compreende que carros e pessoas sejam diferentes. “É lógico que isso é terrível do ponto de vista emocional.” Mas recorda que empresas privadas precisam ter receitas compatíveis com seus custos, para não quebrarem. Segundo o presidente da Abramge, o plano de referência brasileiro – a soma dos planos ambulatorial e hospitalar, 92% dos contratos firmados a partir de 1999 – é o mais completo do mundo.

“O plano de saúde é um sistema de mútua, que implica adquirir o plano como prevenção, e não quando se precisa de tratamento”, analisa Januario Montone. “A média internacional de utilização de planos de saúde é de 30% dos usuários a cada mês. Se 100% precisarem, não é mais um sistema de mútua. Tem que ser outra coisa.”

O Conselho Federal de Medicina rejeita o conceito de doença preexistente. “Não existe esse termo na literatura médica mundial”, diz Regina Parizi, conselheira do CFM. Até que o câncer de mama evolua para um nódulo pequeno, pode levar dez anos. “Se, um mês depois de a mulher declarar que não tem a doença, aparecer o nódulo, a empresa vai alegar que ela ocultou.” Do mesmo modo, uma pessoa pode estar infectada pelo vírus da aids, mas não ter carga viral detectável.

“Podem dizer que hérnia é proveniente de fragilidade anterior da parede”, alerta a presidente do CRM. “O risco de adoecer sempre existe, seja maior ou menor.” As empresas não fazem nem exame para detectar doenças antes do contrato, rebate Arlindo Almeida. “Basta entrevista qualificada e, se o usuário não sabia que tinha a doença, é coberto.” O ônus da prova, salienta, é da empresa.

Mas a polêmica é tão sensível quanto infindável. “Como posso concordar que, se o paciente disser que é portador de uma doença, deve ficar sem atendimento naquela área?”, pergunta Regina. “O mais lamentável é que um órgão do Estado exija uma postura dessas de um médico.”

Januario Montone reconhece que “esse é o tipo da discussão impopular que a agência tem de fazer na hora em que ela se mostra necessária”. E a prova de sua necessidade: na primeira das duas consultas públicas que a ANS promoveu sobre o tema, as entidades do mercado mandaram mais de 1.300 procedimentos como sugestão de alta complexidade. “De onde você acha que elas tiraram isso?”, pergunta Montone. “Elas inventaram ou era o que elas estavam praticando?”

O primeiro rol divulgado pela agência tinha 434 procedimentos de alta complexidade. Uma revisão reduziu o número para 322. A ANS identificou 25 grupos de patologia. A cada grupo está associada uma média de 13 procedimentos de alta complexidade. Dos 322, só os procedimentos do grupo de patologia que o usuário declara ter ao assinar o contrato – ou cuja preexistência seja provada pela operadora — estão sujeitos a 24 meses de carência. Todos os outros – de um total de 3.097 procedimentos listados – são obrigatórios.

“Acabamos com a arbitrariedade na discussão dos procedimentos”, orgulha-se Montone. “Caso contrário, o consumidor é que teria de discutir na hora com a operadora se aquele procedimento é ou não da doença que ele tinha, se é ou não de alta complexidade.”

Antes de fazer lista de exclusão de procedimentos, diz Regina Parizi, a agência deveria ter criado uma câmara técnica para discutir uma política de incorporação de tecnologia, tanto do setor privado quanto do público. Há um ditado no meio médico: existem mais tomógrafos na Avenida Paulista do que no Canadá inteiro – que tem oito aparelhos.

No interior, algumas cidades têm tomógrafo, mas não médicos. O preço desse desperdício, resultante da falta de critério na incorporação da tecnologia, é muito alto para a sociedade, contabiliza a presidente do CRM, argumentando que ele recai também sobre os planos de saúde.

Há itens na lista que não podem mais ser considerados de alta complexidade, corrige Regina. A quimioterapia, por exemplo, é uma injeção que o paciente toma e depois pode ir para casa. O mesmo se aplica à hemodiálise. Não são complexas. São caras e freqüentes.

A presidente do CRM argumenta que os planos de saúde já são beneficiados pela carência de seis meses e pelos planos empresariais, que cobrem usuários em fase produtiva e que, sendo mais jovens, adoecem pouco. “Não são todos que estão com câncer”, diz ela. “O pré-pagamento é movido pela solidariedade: quem não está doente paga por quem está.”

“O modelo são as empresas americanas, que têm todas essas cláusulas de exclusão de tratamento de doenças preexistentes e as empresas têm mecanismos muito avançados para se defenderem”, pondera Sueli Gandolfi Dallari, do Núcleo de Pesquisa em Direito Sanitário da USP. “Considerando que se está mexendo com empresas desse tipo, nossa lei até é generosa (para com os usuários).”

Regina Parizi cita exemplos em que, se o procedimento excluído fosse executado, o tratamento ficaria mais barato, além de evitar a perda de tempo precioso. Um deles é a mamografia com punção. Quem já teve câncer deve submeter-se a mamografias periódicas. Se tiver determinado líquido, deve fazê-las com punção, mas ela não é permitida.Outro caso é o do tratamento de aids. A regra prevê carência para o exame da carga viral, que o portador do vírus tem de controlar para ver se está respondendo ao tratamento. “Tem de esperar os sintomas, quando fica muito pior e mais caro.”

Regina Parizi relata que o CFM enviou à agência documento discutindo a postura e o critério, com avaliações feitas pelas especialidades. “Eles mantiveram as regras e apenas reduziram o número de procedimentos, excluíram o que estava fora demais do compasso.” Agora, o CFM, entidades de defesa do consumidor e o CNS vão questionar o rol na Justiça.

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