Enquanto a crise se agrava, o presidente vai para o divã

Lula culpa as ‘elites’, evoca os pais, alterna lágrimas e bravatas, e se comporta como se o problema não fosse com ele

 

Não bastasse o espetáculo diário da distribuição de “recursos não contabilizados”, os brasileiros assistem a um show paralelo: o presidente resolveu se deitar publicamente no divã. Entre prantos e bravatas, Lula decidiu que é vítima de uma elite que o rejeita, que o persegue, mas que vai ter de aturá-lo, porque o povo, em cujo encalço ele saiu ultimamente, o ama.

Os sinais apareceram há um mês e meio, quando documentos começaram a dar substância às confissões de Roberto Jefferson. Num evento sobre agricultura familiar em Luiziânia, Goiás, o presidente se auto-elegeu a maior “autoridade moral e ética” do País “para fazer as mudanças nas instituições e no comportamento social”. Desde então, as mudanças de comportamento social mais visíveis foram no próprio presidente.

Seguiram-se as frases sobre “não abaixar a cabeça” diante da elite e sobre ela ter de “engoli-lo outra vez” (ver ao lado). A síndrome persecutória veio acompanhada de alusões aos pais pobres e analfabetos, e a regressão à infância culminou na cena de choro de quinta-feira. Sobre um palanque montado no Canto do Buriti, Piauí, Lula expôs suas feridas psíquicas: “Minha mãe teve o azar de chegar a São Paulo e encontrar o marido casado com outra mulher. Estou dizendo isso para dizer uma coisa: convivi com ela até 1980, quando morreu. E nunca vi minha mãe perder a esperança.”

Freud explica. “Quando uma pessoa está avançando e depara com um grande obstáculo, reage como um Exército que vinha conquistando território e de repente é obrigado a recuar”, diz o psicanalista Jorge Forbes. “Retorna para cuidar dos feridos, alimentar-se, descansar.” O presidente, observa Forbes, está recuando para o seu “elemento primitivo”: a terra natal, o Nordeste, a mãe. “O choro dele funciona como um testemunho da veracidade da ligação com a mãe.”

“Podemos respeitá-lo do ponto de vista afetivo, mas o fato é que o presidente está cuidando das próprias feridas quando deveria estar cuidando das feridas da nação”, cobra Forbes. “O Brasil espera que o presidente reaja de acordo com a responsabilidade de seu cargo.”

POPULISMO

O historiador Boris Fausto vai numa linha semelhante. “Ele está indo às raízes com lágrimas e emoção, que a gente respeita, mas presidente é para governar, enfrentar acusações, demonstrar que são infundadas”, diz Fausto. “Não posso julgar lágrimas, mas essa campanha é claramente populista. Ele sai em busca do popular, para sensibilizar. Nisso, ele é bom, mas isso não é governar.”

O termo “populista”, aqui, é aplicado por analogia. Getúlio Vargas, o populista brasileiro por excelência, tinha, além da retórica, um programa de governo populista, que incluiu a introdução de leis sociais, direitos trabalhistas e a intervenção do Estado na economia, lembra o sociólogo Francisco Weffort, autor de O Populismo na Política Brasileira (1978). “O populismo de Lula tem só a perna simbólica, mas não a dos direitos econômicos e sociais.”

Para a cientista política Maria Hermínia Tavares de Almeida, da USP, chamar Lula de populista, no sentido técnico da palavra, “seria atribuir excessiva coerência a um governo desorientado, sem rumo”. Weffort, fundador e ex-dirigente do PT, que conviveu estreitamente com Lula, nota que o presidente está visivelmente “desesperado”, tentando fugir da realidade. “Os mais informados têm a sensação de que o presidente está vivendo noutro país”, descreve Maria Hermínia.

“É muito difícil para Lula enfrentar o problema no plano político-institucional”, diz Weffort, ex-ministro da Cultura do governo Fernando Henrique. “O envolvimento dele é muito forte. Ele fala como se não tivesse nada a ver com o PT. Para quem conhece um pouco de política partidária e especialmente do PT, isso é absolutamente inverossímil.”

ELEIÇÕES

O escapismo do presidente rumo aos grotões se combina com uma estratégia eleitoral. As pesquisas mostram que Lula vem perdendo popularidade entre as camadas mais abastadas e instruídas da população, enquanto as classes C, D e E se mantêm fiéis a ele. A orientação é atribuída ao publicitário Duda Mendonça, que, a julgar pelos saques nas contas de Marcos Valério, não deixa barato.

Sintomaticamente, na solidão em que submergiu, Lula tem como interlocutores um marqueteiro e um criminalista, o ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos. Um circunscreve o problema à imagem; o outro, às formalidades jurídicas, dando aos crimes a conotação do caixa 2 de campanha, tradicionalmente impune, em lugar da corrupção e formação de quadrilha. Esses dois ângulos têm moldado as reações de Lula, de resto instintivas.

Em seu ponto de partida, o governo Lula combinava um déficit de credibilidade econômica com um saldo de legitimidade política, lembra Lourdes Sola, da Tendências Consultoria. O escândalo de corrupção está invertendo essa relação. O governo agora goza de credibilidade perante o mercado, em razão de sua política econômica austera, mas sofre de um inesperado déficit de legitimidade. Para tentar supri-lo, Lula adota uma “mentalidade de credor”, analisa Lourdes, recorrendo à culpa que todos sentimos pelas desigualdades do País.

O irônico, neste caso, é que, se há uma conspiração da “elite”, é para preservar o presidente, observa Boris Fausto. “As elites têm se comportado de forma muito prudente, sublinhando que não há comprovação de envolvimento direto do presidente”, analisa Maria Hermínia. “Uma prudência que o PT não demonstrou no passado”, completa ela, referindo-se aos ecos do “Fora FHC”.

O mercado tem acompanhado a ciclotimia do presidente – que na quinta-feira foi aos grotões bradar contra as elites e na sexta se reuniu com 22 a elite do empresariado, a seu convite, em Brasília. “O presidente não está adotando uma estratégia coerente, e o mercado segue o seu comportamento errático”, observa Christopher Garman, do Eurasia Group, de Nova York.

SUSTOS

Depois de seu primeiro ataque à elite, há duas semanas, a Bolsa caiu 6% em dois dias, lembra o analista. Na semana seguinte, o presidente advertiu que a “economia é vulnerável” e renovou seu compromisso com a política econômica, e o mercado se reergueu. “Nos próximos meses, vamos ter mais sustos, mas, no fim, o que vai ser determinante será encontrar ou não o batom na cueca”, diz Garman, referindo-se a uma evidência que ligue o presidente à corrupção e, daí, ao impeachment.

Mesmo sem chegar a isso, está em jogo, hoje, uma questão de responsabilidade, no sentido amplo. “No regime presidencialista, o presidente tem de responder pelos atos do governo”, diz Roberto Romano, professor de ética da Unicamp. “Se não sabe o que o governo está fazendo, tem de ser demitido.”

Para Romano, o “populismo regressivo” do presidente, com seus apelos ao imaginário familiar e materno, procura caracterizá-lo como um “líder carismático, a quem se deve uma obediência incondicional, uma pessoa intangível, sem contato com as coisas do cotidiano e portanto sem responsabilidade por elas”. E isso, assinala Romano, “não combina com o complexo Brasil de hoje”. 


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