‘Estávamos chegando na podridão’

‘Exilado’ em Joinville, delegado que desvendou a remessa de dinheiro do caso Banestado diz por que foi afastado da tarefa

 

JOINVILLE – A Delegacia da Polícia Federal de Joinville, norte de Santa Catarina, ocupa um pequeno prédio num pé de morro do bairro de Boa Vista. Fazendo jus ao nome do bairro, suas janelas dão para uma montanha coberta de verde. Passando-se pela catraca de cartão magnético desativada, ganha-se um corredor interno. Na quinta porta à esquerda, numa sala nua, à sua frente apenas um computador com conexão lenta de internet, dá expediente José Francisco de Castilho Neto.

O delegado Castilho, como ficou conhecido nacionalmente o homem que descobriu o megaesquema de remessas ilegais de dinheiro pelas contas CC5, dando origem à CPI do Banestado, foi jogado no ostracismo pela cúpula da PF, reduzindo-o ao que o jargão chama de “delegado de corredor”.

Por que o exílio? Seus críticos dizem que ele falava demais, lançando suspeitas sem apurar e tirando conclusões sem fazer a tarefa de casa. Castilho, 45 anos, 17 na PF, tem uma explicação bem diferente a dar, em entrevista ao Estado: “Estávamos chegando na podridão nacional, pegaríamos todo o caixa 2 dos políticos, poderíamos chegar a nomes até de presidente da República.”

Segundo Castilho, a Polícia Federal só prende doleiros e laranjas, gente de “terceiro e quarto escalão”, porque está investigando a máquina de lavagem, não os donos do dinheiro. “É como decepar o rabo da lagartixa. Nasce outro. O cérebro do esquema continua lá.”

Por que o sr. foi afastado das investigações?

Primeiro, uma ressalva: aceitei conversar com o sr. na condição de cidadão. Vou fazer um enfoque histórico do que se passou, no interesse público, não como funcionário, nem vou divulgar informações sigilosas. Na época (abril de 2003), não entendi o motivo. A direção da Polícia Federal me trouxe de volta dos Estados Unidos no ápice da investigação do Banestado, quando eu quebrei o sigilo da conta Beacon Hill, a famosa Farol da Colina, com a inaceitável argumentação da falta de verba para diária. Eu estava investigando uma saída de US$ 30 bilhões – e a CPI, com os documentos que vieram depois, mapearia US$ 150 bilhões – me mandaram voltar por causa de uma diária de US$ 300. Não obstante os contundentes relatórios que eu vinha apresentando, mostrando que nomes de políticos estavam aparecendo, que aquilo era a maior bandalheira da história do País, a missão foi bruscamente interrompida. Chegando ao Brasil, nem sequer fui recebido pela direção da PF. Acabei tendo que entregar ao procurador Luiz Francisco os 100 quilos de documentos, com as respectivas mídias magnéticas. Eram os extratos bancários das contas-ônibus, nos quais apareciam nomes de políticos, indícios gravíssimos.

Quais políticos? Pertenciam aos governos FHC ou Lula?

Prefiro não declinar nomes. Mas a mídia já soltou isso em profusão. Era estarrecedor ver os nomes. Envolvia gente da mais alta cúpula dos dois governos. Hoje, estou convencido de que todo esse esquema de lavagem de dinheiro que estávamos tão perto de desvendar foi montado principalmente para mandar para fora do Brasil a arrecadação do caixa 2 dos partidos. Na subconta Tucano, por exemplo, ficamos espantados com a coincidência de nomes com o cenário político nacional.

Os seus críticos dizem que o sr. falava demais, sem apurar o suficiente, e que isso até atrapalhou os canais de comunicação com os Estados Unidos.

Muito pelo contrário. Tenho credibilidade nos EUA. Tanto é que fiz uma coisa inédita: quebrar o sigilo bancário de centenas de contas na cidade de Nova York num espaço muito curto de tempo, bem como ter estabelecido um intercâmbio nunca antes visto com o Ministério Público Distrital de Nova York. Como a investigação estava ameaçando integrantes da elite política e empresarial, sofri um assassinato moral.

Tem havido um grande número de prisões de doleiros.

É claro que toda vez que se combate o crime é importante. A PF tem o seu mérito. Mas essa parte da corrupção que a PF tem combatido é a de terceiro e quarto escalões, que pega juiz de primeira instância, delegado da PF, policial rodoviário, investigador, empresário, vereador de cidade pequena, políticos de Estados inexpressivos, etc. Isso é fácil. Difícil é combater o grosso da corrupção. Simplesmente ninguém chega ao primeiro escalão. Por exemplo, ninguém investigou nada sobre o Waldomiro (Diniz, ex-assessor do ex-ministro José Dirceu) ainda. O que virou o inquérito do PC Farias? Quais os resultados? Nenhum. Quais os políticos de relevância nacional apontados nos meus relatórios que chegaram a ser processados? Ninguém. Nem vai ser.

Por quê?

Porque eles querem investigar lavagem de dinheiro começando por desmontar a máquina, do doleiro para baixo: gerente e diretor de banco, laranja, testa-de-ferro. É a parte menos importante do esquema. A mais importante são os idealizadores e os usuários da máquina de lavagem, que são os políticos e grandes empresários nacionais, seus beneficiários finais. É como decepar o rabo da lagartixa: nasce outro. O cérebro do esquema continua lá. Qualquer investigador mal-intencionado sabe que, no crime financeiro, se for investigar quem depositou o dinheiro e caminhar para trás, para ver de onde ele saiu, vai para o infinito. O inquérito nunca acaba. É preciso correr atrás do dinheiro, ver para onde ele foi. Por uma razão muito simples: não existe dinheiro sem dono. Por que a principal figura desse crime, que é o dono do dinheiro, está relegada a segundo plano?

Como chegar até ele?

Qualquer investigador com um mínimo de inteligência sabe que a pedra angular do crime financeiro é o rastreamento do destino do dinheiro. Primeiro você localiza, bloqueia o dinheiro, vê em nome de quem está a conta final, processa o dono do dinheiro e depois volta para investigar quem lavou. Eu estava fazendo o rastreamento internacional com uma fluidez impressionante quando fui surpreendido em Nova York por uma interrupção brusca. Hoje, como cidadão, entendo por quê: estávamos chegando na podridão nacional, pegaríamos todo o caixa 2 dos políticos, poderíamos chegar a nomes até de presidente da República.

O presidente Lula diz que é o melhor para combater a corrupção e colocou no Ministério da Justiça um jurista de renome.

O ministro Márcio Thomaz Bastos, com todo o respeito que tenho pela sua conduta profissional, foi um exímio advogado criminalista exatamente da elite corrupta deste país. Fez riqueza, licitamente, defendendo essa turma. Tem vínculos de amizade, de parceria de trabalho. Ele não poderia jamais estar no comando da pasta da Justiça, que tem como um dos principais braços a Polícia Federal, linha de frente da investigação do crime financeiro. É um ministro importante, que poderia ser aproveitado noutra pasta, até mesmo a Casa Civil. Precisamos de eleição popular para a direção da PF. Ela não tem hoje autonomia para investigar o caso Waldomiro e o caso mensalão, que deságuam em cima do presidente. Precisamos banir as CPIs, pelo menos com essa casta de políticos desonestos que compõe o Brasil de hoje. Os bandidos estão se auto-investigando.

Olhando para aquela malha de transações financeiras que o sr. mesmo desvendou, o que o sr. faria de diferente do que está sendo feito para chegar aos donos do dinheiro?

 

A coisa mais simples do mundo. Fica como sugestão, e estou à disposição do presidente Lula, se quiser me convocar de novo. Só quero uma pequena equipe – um delegado, um escrivão e um perito em contabilidade bancária –, verba e autonomia. Vamos para o exterior, peticionar nas cortes americanas a quebra do sigilo em todos os bancos por onde passaram as grandes boladas de desvio de dinheiro que já investigamos. Quando chegarmos às últimas contas, vamos peticionar à Justiça americana o bloqueio e vamos botar a mão no cartão de autógrafo da abertura de conta, que vai ser a prova crucial contra o dono do dinheiro. Em três, quatro meses, tenho certeza de que traremos provas do exterior capazes de pôr pelo menos meia dúzia de tubarões da política nacional na cadeia. 

 

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