‘Estou besta, ninguém nunca viu isso aqui’

Tiroteio pela disputa do tráfico na Rocinha, que impediu até a Via-Sacra, espanta moradores

 

 

RIO – Faltavam 15 para a meia-noite de quinta-feira. Os 22 atores do grupo Roça Caçacultura tinham terminado o último ensaio antes da apresentação da Via-Sacra, na Sexta-Feira da Paixão, e conversavam sobre o grande dia que estava por vir, quando começou o tiroteio. O grupo estava no Largo do Boiadeiro, na entrada da Rocinha.

Os disparos vinham da curva do S, por onde os atores e espectadores tinham acabado de passar. Voltaram para casa correndo, sem saber ao certo do que se tratava. No decorrer da sexta-feira, descobriram que o bando do traficante Dudu (Eduíno Eustáquio de Araújo, que fugiu do regime semiaberto de prisão em janeiro) tinha invadido a favela, território do Lulu (Luciano Barbosa da Silva), para recuperar o controle do tráfico no morro. Pela primeira vez em 13 anos, a Via-Sacra, que percorre 2 quilômetros morro acima, acompanhada por 3 mil a 4 mil espectadores, não pôde ser encenada.

Produzida com doações e alguma ajuda da prefeitura, a peça inclui entre seus atores ex-viciados e ex-trombadinhas. Usa o cenário real da favela para representar as passagens mais conhecidas da caminhada de Cristo rumo à crucificação – seguida de sua ressurreição, na Igreja da Boa Viagem. Além de envolver os atores, de 14 a 40 anos, todos moradores da Rocinha, a peça também comove a comunidade.

“A gente fica alegre, porque vê as famílias reunidas. Tem gente que faz as pazes nesse dia”, conta René Melo, o organizador do espetáculo. “Foi muito triste não podermos ter encenado a Via-Sacra, porque, com esse trabalho, a gente começa a mexer com a cabeça do jovem, e quando ele se desilude, ele conclui que ‘tem mais é que meter bala mesmo’, que não tem solução.”

Na noite de sexta para sábado, o tiroteio se intensificou, já com a intervenção da polícia, além dos dois bandos rivais. A luz foi cortada. “Pai, tá dando muito tiro”, disse, no escuro, o filho de René, de 5 anos. Pai, mãe e filho se deitaram no chão. Desde sexta, o filho de René não sai de casa. René, que é diretor cultural da União Pró-Melhoramento dos Moradores da Rocinha, vai todos os dias para a associação. “Não durmo há cinco dias”, conta. Ele tem sofrido ameaças de morte.

René, de 27 anos, que trabalhava de garçom, está desempregado desde que assumiu a diretoria da associação, há dois meses. A nova gestão coincidiu com o recrudescimento da violência na Rocinha, depois que quatro adolescentes foram mortos em incursões policiais. A intensa demanda dos moradores o fez faltar ao serviço várias vezes, até ser dispensado. “Sei que é difícil acreditar que alguém possa abandonar seu trabalho para defender pessoas que nem conhece”, diz René, que estudou até a 1.ª série do ensino médio. “Mas já vi muita coisa aqui.”

Na sexta, integrantes do bando invasor passaram pelas casas na Dionéia, uma área no alto do morro, avisando que as famílias tinham de ir embora. Desde então, muitas pessoas têm descido com seus filhos, sem saber ao certo para onde ir.

Os comerciantes têm recebido avisos – supostamente do bando de Dudu – de que agora terão de pagar propina. Mesmo assim, a maioria das lojas estava aberta ontem. As agências do Banerj e da Caixa se mantiveram fechadas. Pelas ruas principais da favela, o movimento era normal. Mas muitas mães preferiram não levar seus filhos à escola. À noite, o ambiente muda. Os traficantes impuseram toque de recolher.

“Estou besta, porque sou nascida e criada na Rocinha, e ninguém nunca viu isso aqui”, diz uma moradora de 39 anos. Ela conta que seu filho estuda numa escola ao pé do Morro do Vidigal, de onde o grupo de Dudu partiu para o assalto à Rocinha. “Nunca houve problema entre os grupos que controlam os dois morros”, afirma. “Não que a gente negue que aqui tem traficante, mas tivemos dez anos de tranqüilidade”, testemunha outro morador.

Segundo René, o grupo Roça Caçacultura sempre pôde fazer o seu trabalho, apesar dos traficantes. “Nossa responsabilidade é desviar os olhos dos adolescentes.” Mas René está confiante de que poderá voltar a desempenhar seu papel. “Tenho certeza de que isso é uma provação que a gente vai passar.” 


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