Falências: uma lei ordinária que vale por uma reforma

Apesar de pontos polêmicos, depois de 10 anos, projeto está pronto para ser votado

 

Na Idade Média, quando um feirante não honrava suas dívidas, os credores quebravam a sua banca. A isso se dava o nome de bancarrota. Os credores podiam até se sentir vingados, mas não recuperavam o prejuízo. Por isso, o advento do capitalismo sepultou a prática. Não no Brasil. Aqui, até hoje, quando um empresário vai mal das pernas, faz-se de tudo para que ele quebre.

A Lei de Falências em vigor foi decretada por Getúlio Vargas em junho de 1945. Já nasceu velha. “Ela foi feita para o quitandeiro, trata o comerciante como pessoa física”, interpreta o advogado Ricardo Tepedino, que atua nessa área. “Não vislumbrou o fenômeno da grande empresa.”

Uma lei de 1938, nos EUA, já falava em reestruturação das empresas em dificuldades. Ainda que a ruína do dono seja inevitável, a empresa deve ser salva, sob nova direção. No Brasil, é o contrário: a empresa é fechada e sucateada, enquanto empresários desonestos salvam suas riquezas pessoais, subornando síndicos da massa falida.

Em princípio, os juízes deveriam escolher os síndicos dentre os grandes credores. Como não têm esperanças de receber o que o falido lhes deve, os credores se desinteressam dos processos de liquidação, que implicam pesados custos judiciais. Sem acompanhamento dos interessados, o processo segue ao sabor dos conluios.

Quando uma empresa enfrenta dificuldades, ainda que momentâneas, de honrar seus compromissos, a opção que a lei lhe oferece é a concordata. Por ela, as empresas têm de pagar 40% de suas dívidas no primeiro ano e 60% no segundo. “Empresa que pode fazer isso não precisa de concordata”, constata Tepedino. Assim, a concordata tem sido a ante-sala da falência, que, por sua vez, fecha a empresa e faz evaporar o patrimônio.

O prejuízo para empresários, trabalhadores, credores e Fisco é fácil de intuir. Mas o problema é ainda mais amplo. A incapacidade dos bancos de recuperar parte do que emprestam é uma das principais explicações para os juros proibitivos. Quem honra suas dívidas arca com o custo da inadimplência. Além de caro, o crédito é escasso. No ano passado, ele representou 24% do Produto Interno Bruto (PIB) – seis vezes menos do que nos EUA.

Em 1993, depois de dois anos de trabalho de duas comissões formadas pelo governo, um novo projeto de lei de falências, centrado na recuperação das empresas em vez de sua quebra, foi apresentado no Congresso.Trata-se de lei ordinária, que requer apenas maioria simples. Até hoje não foi aprovado.

“O tema é muito complexo”, explica o relator Osvaldo Biolchi (PMDB-RS). Feita a “aglutinação” de 133 emendas, o projeto está pronto para entrar na pauta de votação. Os ministros da Casa Civil, José Dirceu, da Fazenda, Antônio Palocci Filho, do Planejamento, Guido Mantega, e da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, asseguraram ao deputado que o governo tem interesse em votar o projeto.

Cauteloso, o novo líder do governo na Câmara, Aldo Rebelo (PC do B-SP), diz que o destino do projeto está nas mãos dos líderes das bancadas, que ele começará a consultar no dia 17, quando começa a legislatura.

O ponto mais polêmico é o que estipula limite de R$ 30 mil para o pagamento de salários atrasados e encargos trabalhistas. Essas dívidas são as que primeiro têm de ser saldadas na liquidação da massa falida, mas, na lei atual, não há limite. Pelo projeto, o que superar R$ 30 mil vai para o fim da fila, junto com as dívidas sem garantia.

O limite foi instituído por emenda do ex-deputado Jair Meneghelli (PT-SP), para evitar que a prioridade dada aos trabalhadores continue servindo de brecha para os donos das empresas falidas colocarem a mão no dinheiro antes de todo mundo, às vezes não sobrando para mais ninguém. Já houve casos de os donos resgatarem R$ 1 milhão, a título de pró-labore para diretores ou de salários para seus parentes empregados na firma.

Depois dos trabalhadores, o segundo na escala de prioridades é – e continuaria sendo, pelo projeto – a Receita. Gabriel Jorge Ferreira, presidente da Federação Brasileira das Associações de Bancos (Febraban), é contra essas prioridades. Ele acha que trabalhadores e Fisco deveriam se juntar “à comunhão dos credores, no esforço para recuperar a empresa”.

Para o professor Antonio Gledson de Carvalho, da Faculdade de Economia e Administração da USP, com o limite de R$ 30 mil, a situação não vai mudar muito. Uma empresa com 10 trabalhadores, por exemplo, não terá ativos para serem liquidados muito acima do valor de R$ 300 mil. Resultado: os credores continuarão recebendo nada. Na sua opinião, a prioridade deve ser dada ao pagamento das dívidas respaldadas em garantias, como ocorre na maioria dos países desenvolvidos.

Gledson argumenta que, com crédito escasso e juros altos, as empresas continuarão não gerando empregos e quebrando, o que prejudica também os trabalhadores. “Uma empresa com crédito oferece melhores condições de trabalho, absorve choques sem demitir. Por ter menor rotatividade, investe em treinamento e oferece melhores salários.”

“Deixem que nós decidamos o que é melhor para nós”, pede João Felício, presidente da Central Única dos Trabalhadores (CUT). Felício é contra o limite. “O empresário tem de pagar o que deve a todos os credores”, argumenta o presidente da CUT, defendendo o confisco dos bens dos falidos no Brasil e no exterior, se necessário.

Já o economista Marcel Solimeo, da Associação Comercial de São Paulo, se opõe à prioridade dada ao Fisco. “Não tem por que o governo não entrar com sua cota na recuperação da empresa”, diz Solimeo, para quem o Fisco “é o único que não arrisca nada”. Os trabalhadores entram com horas de trabalho; os fornecedores, com a mercadoria; os bancos, com dinheiro. “E o Fisco é o único que não pode perder?”

“Não acho socialmente justo nem razoável alterar a ordem de preferências”, contesta Everardo Maciel, ex-secretário da Receita Federal. “Não se pode buscar uma solução para as falências que torne a regra de preferência inócua.” Durante a elaboração do projeto, Everardo resistiu ao parcelamento dos débitos com a Receita, argumentando que seria uma forma de alterar a regra de preferência. Com o débito parcelado, diz ele, se começaria a pagar outros credores. E o dinheiro poderia acabar antes de se quitar a dívida com o Fisco.

Quando faliu, o Mappin devia algo como R$ 1 bilhão. A venda da rede de lojas, em funcionamento, não valia um terço disso. Se um empreendedor pudesse comprar a rede em funcionamento sem levar as dívidas consigo, o Mappin não teria fechado as portas. Seu valor e seus empregos teriam sido preservados. O Código Tributário Nacional, no entanto, impede essa solução. O empresário em apuros não encontra comprador ou vende na bacia das almas.

“É uma lei estúpida”, resume o advogado Ricardo Tepedino. “Se a rede do Mappin tivesse sido vendida, o próprio Fisco teria apurado algum dinheiro.” Com o Mappin fechado, e seu valor evaporando, nem o Fisco nem ninguém receberá nada, argumenta Tepedino. A futura lei de falências não pode resolver esse nem qualquer outro problema vinculado a questões tributárias, porque o Código é lei complementar, estando hierarquicamente acima da lei de falências, que é ordinária.

“O projeto de lei não é perfeito, mas é um salto”, diz o jurista Modesto Carvalhosa. Ele acha que a nova lei deveria ser ainda mais enfática na imposição da vontade da maioria dos credores sobre a minoria, que costuma emperrar as soluções. O projeto prevê que assembléias de credores aprovem, por maioria, planos de recuperação das empresas, que os juízes apenas homologariam.

Casos como o da Arapuã teriam outro desfecho. Ela entrou em concordata em 1998. No ano seguinte, 90% dos credores haviam entrado em acordo sobre a forma de equacionar a dívida. Mas a fábrica Evadin discordou do plano. Até hoje, não foi encontrada solução.

Para Eduardo Lundberg, do Departamento de Pesquisa Econômica do Banco Central, o projeto não resolve problemas que estão “na essência do não-funcionamento do sistema falimentar brasileiro”: não garante a participação e fiscalização dos credores, não valoriza as negociações entre as partes e não elimina o excesso de burocracia na venda de ativos de empresas falidas ou em dificuldades. Ainda assim, como todos, Lundberg acha que os avanços são importantes.

Para economistas e juristas, a mudança da lei de falências é tão importante quanto as reformas tributária e da Previdência. “Esse projeto representa uma mudança de paradigma do Estado”, resume Jairo Saddi, das Faculdades Ibmec. “Em vez de o Estado realizar direitos, como tem sido até agora, é o credor que deve realizá-los, por meio de um acordo privado. O Estado apenas homologa, evitando fraudes e protegendo os credores.”


Deixe o seu comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

*