Guaranis-ñandevas reivindicam área em MS

Índio aponta lança para Lourival Sant’Anna em fazendo ocupada no Mato Grosso do Sul

PARANHOS, Mato Grosso do Sul — Domingos Gregol Puckes olha para sua fazenda com um misto de orgulho e desgosto. Orgulho por ter, em um ano e dois meses, puxado a rede elétrica, instalado água, construído curral de aroeira e ipê e mecanizado o trabalho na terra. Desgosto, porque há um mês não pode entrar na fazenda e a vê escapando pelas mãos.

Puckes é um dos quatro proprietários que tiveram as terras invadidas por cerca de 300 índios guaranis, no extremo sul de Mato Grosso do Sul, fronteira com o Paraguai. Com aval do laudo técnico de um grupo constituído pela Funai, um total de 600 índios reivindica uma área de 4.025 hectares dividida entre 31 pequenas e médias propriedades e atinge também parte de três grandes fazendas. Os índios, que viviam em Pirajuí, aldeia próxima, se dizem originários dessa terra, chamada Potrero Guaçu.

Puckes vai enumerando, na estrada, as melhorias que introduziu na fazenda de 174 hectares que, segundo ele, vale R$ 250 mil. Diz que tinha 80 cabeças de gado, produzia 100 litros de leite e estava construindo um aviário para 5 mil frangos. “Olha, os índios armaram uns barracos ali, ao lado da sede”, aponta. “Eles abriram uma vala na entrada da fazenda e arrebentaram o dique da represa, que tinha 5 mil peixes, para alargar a entrada e impedir o acesso.”

O carro da reportagem atreve-se pelo caminho que leva à entrada principal. Não demora um minuto e os índios começam a aparecer, correndo na direção da entrada. São adultos, rapazes e crianças, a maioria armada de arco, flecha, borduna. Um rapaz vem com uma espingarda. Alguns estão pintados para a guerra.

O jipe pára. Ficam no carro o motorista paraguaio Cabrera e Domingos Puckes, este um pouco escondido, no banco de trás. O repórter do Estado desce, enquanto ressoa em sua memória a advertência do administrador regional da Funai de Amambai, José Nilton Bueno: “Não vá até lá, é perigoso, os índios estão muito nervosos.”

O repórter avança lentamente em direção aos índios, que estão a uns 100 metros, atravessando a vala. É a primeira vez que entra na área um branco que não seja da Funai. O encontro é um pouco tenso, mas não violento. O repórter é rodeado pelos índios, que passam da hostilidade para a simples desconfiança. Por via das dúvidas, continuam apontando-lhe as armas enquanto aguardam a chegada do cacique Avaruichá. A espingarda desapareceu.

O cacique guarda distância de 10 metros. Começa falando em guarani e logo cede ao português, que não fala mal. Garante que são mais de 300. Comeram apenas uns cocos e mandioca. Agora, estão passando fome. A Funai não ajuda? “A Funai não tem condição de ajudar porque não estamos deixando ninguém entrar aqui”, afirma. “Estamos revoltados demais.”

José Nilton Bueno havia explicado que os índios se cansaram de esperar pelo cumprimento das promessas da Funai de reconhecer a área como terra indígena. Nas duas aldeias de Paranhos eram 2 mil índios numa área total de 2 mil hectares. Estavam asfixiados e viam Potrero Guaçu como sua.

Segundo moradores da área, no entanto, a caminhonete F-1000 da Funai tem entregado mantimentos para os índios em Potrero Guaçu. E, na terça-feira, descarregou sete fardos, cada um com uma dúzia de colchonetes. O dono do Supermercado Vencedor, Marcos Peres, disse ao Estado que vendeu os colchonetes para os funcionários da Funai, que também têm comprado arroz, feijão, carne, farinha de trigo, macarrão, sal e açúcar. As compras somam entre R$ 1,5 mil e R$ 2 mil, a cada duas semanas.

Avaruichá diz que também não quer conversa com a missão evangélica. “Quando fomos despejados daqui, ninguém nos ajudou”, reclama. “Se a Funai tivesse nos ajudado não teria deixado a gente sair da nossa terra.” O Incra foi expulsando os índios lentamente: “Doou um lote, depois veio essa política pra nós sair daqui”, diz Avaruichá. “O pessoal foi tirando devagar, politicamente, entregando lotes, e branco não quer a gente vizinho.”

O cacique continua: “Pra nós, era tudo mato; tinha caça, pesca e quem destruiu foi o branco”, afirma. “Queremos a nossa terra limpa.” As fazendas estão cobertas de pastos e lavouras. Avaruichá reconhece que será difícil voltar a haver caça e pesca nessas terras. “Mas vamos plantar e queremos reflorestamento,” diz ele. “Pra gente sair daqui, só a morte.”

Avaruichá afirma que saiu dessa terra há uns 15 anos. Hoje, tem 42. “Todo mundo que tá aqui é daqui; essa terra é nossa.” Segundo o cacique, existem 23 aldeias na região, reunindo 5 mil índios. Todas estão unidas. “Quando a gente precisa, eles estão por aqui.”

Avaruichá garante que os índios não têm arma de fogo. “Nossa arma mais forte é o rezador.” Estão lá seis rezadores, ou nandirus, em guarani. Fazem todo tipo de ritual, dia e noite, o tempo todo. “Nem posso explicar o que eles fazem; branco não vai entender.”

Valdi Velozo, proprietário de 125 hectares na área reivindicada pelos índios, diz que era ameaçado toda vez que seu peão ia manejar o gado no canto da fazenda próximo de onde os índios estão. “Os índios deram mais de dez tiros para o alto, na primeira vez”, afirma Velozo. “Agora, a gente não leva mais o gado para lá.” Outros proprietários e empregados também disseram que viram os índios com espingardas e rifles.  

O cacique conclui a entrevista com um alerta: “Não pode entrar aqui, assim; graças a Deus que não aconteceu nada.” Até agora, não houve confrontos.

Quando entraram nas terras, na noite do dia 19 para 20 de abril, armados e pintados para a guerra, os índios não encontraram ninguém nas sedes. Havia apenas caseiros e capatazes, em suas casas, e não esboçaram reação. Os donos das quatro propriedades invadidas moram em Paranhos, a cerca de 3 quilômetros.

Na manhã do dia 20 de abril, uma segunda-feira, Flaviano Tavares da Silva, de 61 anos, e sua mulher, Zilá Benitez, de 56, chegaram em sua propriedade de 16 hectares e já encontraram os índios lá. “Tinham levado tudo o que havia na casa”, diz Zilá. “Levei um susto, pensei que iam matar nós.” O casal tinha 16 cabeças de gado. Os índios mataram uma novilha que estava para dar cria. As outras estão à deriva. Tinham também mil pés de erva-mate e um alqueire de mandioca. “Eles estão comendo tudo”, dizem. O casal vive da terra.

Wenceslau Gomes, de 58 anos, também vive de seus 13 hectares na área reivindicada pelos índios. Tem 800 pés de erva-mate, que lhe rendem cerca de R$ 6 mil a cada dois anos. “Plantei minha aposentadoria aqui”, sorri. Sua mãe, Simona Tavares da Silva, 80 anos, tem um lote de 10 hectares, onde mora numa casa de madeira. “Nasci aqui”, diz ela.

Simona garante que essa área tem sido de brancos desde que era menina. Flaviano, Zilá, Wenceslau e outros moradores mais velhos dizem o mesmo: índios passavam de vez em quando, pegavam algo das plantações,  mas não moravam lá.  

Não é assim que pensa o antropólogo Rubem Thomaz de Almeida, coordenador de uma equipe de seis técnicos criada pela Funai em novembro para analisar a reivindicação dos índios. O laudo de 150 páginas assinado por ele atesta que uma parte dos guarani-ñandevas viveu em Potrero Guaçu e recomenda que a terra seja devolvida.

“Para chegar a esta conclusão, foram utilizados dados da arqueologia, da etno-história, da antropologia e da etnologia”, sustenta. “Reforça este argumento o fato de que junto aos colonos não indígenas de toda a região é voz corrente e unânime que naquele lugar específico sempre viveram estes guarani-ñandeva.”

A reportagem do Estado, depois de falar com dezenas de moradores, constatou o oposto. Ninguém, a não ser os índios, afirma que eles estiveram fixados lá nas últimas décadas.

A invasão despertou hostilidade aos índios. “Eles bebem, pegam coisas dos outros, invadem terra e ninguém pode fazer nada contra eles”, diz Jerônimo Casa, de 59 anos, dono do Hotel Central. “Essas pessoas que têm terra lá são uma gente trabalhadora”, diz sua mulher, Maria Fornari, de 56 anos. “Não entendo por que os índios têm de ter esse tratamento especial.” O prefeito de Paranhos, Heliomar Klabunde (PSDB), está revoltado com o governo federal. “Daqui a pouco vamos virar um município de aldeias de índio”, protesta Klabunde. Dentro do município de Paranhos, de 12 mil habitantes, já há duas aldeias “e meia”: Pirajuí, com 1.600 índios, Paraguaçu, com 400, e Sete Cerros (que ficou sem censo), que o município divide com o vizinho Coronel Sapucaia.

O problema é que “índio não produz nada, não traz arrecadação para o município, só dá despesa”, denuncia. Como confirmaram os índios em Pirajuí, a prefeitura mantém ônibus escolar, que leva e traz os estudantes de manhã, à tarde e à noite. Há escola dentro da aldeia, com cinco professores índios.

Outras crianças estudam na escola estadual de Paranhos e na missão evangélica.

Há uma ironia aqui. Domingos Puckes, cuja fazenda está ocupada, foi prefeito de Paranhos entre 1993 e 96, pelo PFL. Em sua gestão, diz que mecanizou 600 hectares da aldeia Pirajuí. Além dos ônibus escolares e das escolas nas aldeias — duas em Pirajuí e uma em Paraguaçu —, afirma que fornecia ambulância para os índios e um transporte mensal para os aposentados das aldeias irem buscar seus proventos no Banco do Brasil de Sete Quedas, a 60 quilômetros.

De qualquer forma, quando se fala com o procurador do Incra em Dourados, Marcelo Cunha Rezende, com o procurador da República em Campo Grande, Paulo Tadeu Gomes da Silva, e com o administrador da Funai em Amambai, José Nilton Bueno — as principais autoridades diretamente envolvidas no caso —, fica a impressão de que a entrega da área para os índios já é fato consumado.

Ainda falta ser publicado edital, declarando a área terra indígena. Klabunde esteve com o ministro da Justiça, Renan Calheiros, no dia 6, tentanto sensibilizá-lo para o drama social. Segundo ele, Calheiros demonstrou não ter idéia do problema dos agricultores.

 Publicado no Estadão. Copyright: Grupo Estado. Todos os direitos reservados.

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