Metade do financiamento eleitoral é irregular

A legislação atual torna virtualmente impossível anular uma eleição por irregularidades nas declarações financeiras

 

 

Na base das grandes crises políticas vividas pelo Brasil desde a restauração da democracia está o financiamento das campanhas eleitorais. Apenas metade do dinheiro realmente arrecadado nas campanhas é declarado oficialmente. A outra metade corre por fora, no caixa 2. A estimativa vem de duas fontes distintas: o deputado Ronaldo Caiado (PFL-GO), relator do projeto de reforma política, e o arrecadador-chefe de um dos candidatos a presidente na eleição de 2002. Segundo o deputado, uma campanha eleitoral no Brasil custa, no papel, de R$ 10 bilhões a R$ 12 bilhões; e mobiliza, na prática, mais ou menos o dobro disso. O complemento vem pelo caixa 2.

Há três tipos de doadores, diz o arrecadador, cada um representando um terço do total: os que dão dinheiro por convicção, para participar do jogo político e garantir acesso aos futuros governantes; os que dão porque isso faz parte de seu negócio: fornecedores e contratados pelo Estado; e os que simplesmente querem subornar os políticos.

No Brasil, há cerca de mil empresários de peso, que doam acima de R$ 100 mil. Não são muitos os que atravessam a barreira do milhão. Os comportamentos variam. Há empresários com reputação de só doar de forma legal. Para alguns setores mais estruturados e formais, o ônus da operação ilegal pode ser alto — em custo e em risco. Uma doação maquiada, para quem precisa prestar contas ao Fisco e aos acionistas, custa em média 30% a mais, em impostos e propina para o fornecedor da nota falsa.

Ainda assim, muitos doadores recorrem maciçamente ao caixa 2. Muitas vezes o dinheiro já entrou sem passar pelo livro-caixa – e assim terá de sair. Mesmo entre empresários com a contabilidade mais regular, a doação por fora é vista como necessidade em face da cultura política. A opinião pública rejeita a doação, com atitude que vai da desconfiança à repugnância.

A empresa que doa abertamente terá os seus negócios com o Estado sob o foco contínuo da suspeita. A oposição – e o PT é um dos partidos que se notabilizaram nisso – está sempre pronta a explorar correlações entre doações de campanha e êxitos em licitações.

Durante a votação do projeto de flexibilização do monopólio do petróleo, em 1995, o então deputado Marcelo Déda (PT-SE) disse uma frase que ficaria célebre: “Os privatistas costumam dizer que a economia deve ser regulada pela mão invisível do mercado, mas essa mão invisível às vezes deixa impressões digitais”, em referência ao fato de o relator do projeto, Roberto Lima Netto (PFL-RJ), ter recebido doação da Petróleo Ipiranga, um dos favorecidos pela quebra do monopólio. “Por meio do caixa 2, o doador bota luvas”, conclui um arrecadador.

Outro motivo para o caixa 2 é que o empresário não quer evidenciar suas preferências. As pesquisas sobre as chances de cada candidato costumam influir no montante doado, mas é natural que se doe mais para os candidatos com os quais se tenha mais afinidade. E isso ficará registrado nas prestações de contas, podendo causar problemas com aqueles com os quais se tenha sido menos generoso.

Sangria – Os inconvenientes da doação declarada contrastam, no Brasil, com a facilidade e a impunidade do caixa 2. Basta empregar técnicas já consagradas pela sonegação de impostos.

É relativamente simples superfaturar notas fiscais de fornecedores, que, descontados o imposto e a parte do intermediário, entregam o resto para o destinatário. Também não há dificuldade em simular “sangria de estoque”: perdas que toda empresa sofre em suas operações. E há setores que trabalham com muito dinheiro em espécie, e não precisam se preocupar com contabilidade.

As empresas com contas em paraísos fiscais podem efetuar depósitos nas contas dos arrecadadores no exterior – que repatriam o valor com doleiros. Freqüentemente, as doações vêm por serviço prestado pela empresa, seja o transporte de avião ou a confecção de material de propaganda. Por analogia, no meio de grandes doadores, a moeda não é o real, mas a “camiseta”. Uma camiseta equivale a R$ 1 mil em doações.

Bancos podem emprestar dinheiro a um juro mais baixo ou não cobrar a dívida. O esquema pesado montado por alguns bancos em Brasília já causou algum desconforto até mesmo na Febraban, que preferiria que eles atuassem em conjunto.

Legislação – A lei eleitoral parece talhada para evitar punições por irregularidades nas campanhas. Os candidatos – que este ano devem somar 430 mil – têm até 30 dias depois da eleição para prestar contas. Os Tribunais Regionais Eleitorais (TREs), por sua vez, têm até oito dias antes da diplomação dos eleitos (em 1.º de janeiro) para julgá-las.

Isso deixa os TREs com pouco mais de 30 dias úteis, no primeiro turno, e menos de 20, no segundo turno, para mergulhar num oceano de milhões de recibos e notas fiscais. Daí o ditado: os candidatos fingem que prestam contas e a Justiça finge que as examina.

Ainda assim, maquiagens grosseiras podem ser identificadas. Em 2002, o TRE-SP desaprovou 290 prestações de contas. Aqui, porém, a corrida contra o tempo se torna mais insana. A lei dá ao Ministério Público até três dias depois da posse para entrar com recurso. Mas, para que o mandato seja impugnado, a ação tem de transitar em julgado: ser julgada no Tribunal Superior Eleitoral até 15 dias depois da diplomação. “Depois, ninguém os pega”, resigna-se um procurador eleitoral.

Em São Paulo, 20 eleitos em 2002 tiveram seus mandatos impugnados. Assim, menos de 10% das contas desaprovadas resultaram em punição efetiva. “Precisamos de legislação mais rigorosa”, pede o presidente do TRE-SP, desembargador Alvaro Lazzarini. “Hoje, se há irregularidade, não tem como punir.” Lazzarini elogia o convênio entre a Receita Federal e a Justiça Eleitoral, firmado em 2002. Segundo ele, o cruzamento de dados aumenta as chances de detectar irregularidades. O convênio seguirá de pé este ano.

A doação sem controle cria um vício de origem e tende a contaminar um governo inteiro. “O governante sabe que quem deu ‘x’ na campanha dá ‘x’ mais 10 durante o governo”, diz o executivo de uma grande empreiteira. Esse dinheiro se incorpora à rotina como pedágio para as decisões de governo, para financiar a campanha seguinte e – por que não? – proporcionar algum conforto pessoal ao político. E, em última análise, ele sai dos cofres públicos, por meio de negócios com o Estado. 


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