‘Não haverá crise institucional: a Constituição não está ameaçada’

Para o jurista Célio Borja, incapacidade de tomar decisões assalta o Executivo e o Legislativo, mas não a acefalia, que seria fatal


Não há risco de crise institucional. Mesmo com as cúpulas do Executivo e do Legislativo simultaneamente sob suspeita de corrupção. A opinião é do jurista Célio Borja. “Todas as soluções estão na Constituição”, diz Borja. “E a Constituição não está sofrendo ameaça de ninguém.” Para o ex-ministro da Justiça, a atual “abulia”, ou seja, a incapacidade de tomar decisões, não é fatal para as instituições. Fatal é a “acefalia”, e a Constituição não a permitirá.

Ex-presidente da Câmara, Borja estima também que a situação precária do presidente da Casa, Severino Cavalcanti – peça ele ou não licença do cargo –, não prejudicará os trabalhos das CPIs nem um eventual julgamento de impeachment do presidente da República. “A Câmara é um órgão colegiado”, define Borja, professor aposentado de direito constitucional e ex-ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) entre 1986 e 1992 (veja perfil). “O plenário é soberano.”

Em entrevista ao Estado, Borja avalia que o mais grave em todo o escândalo “não é a infração a certas regras de probidade administrativa”, mas o “assalto ao poder através da corrupção”. O jurista vê, aqui, um fundo ideológico: a concepção de que “direito e moral são epifenômenos” – subprodutos acessórios, e não princípios determinantes. E valores malditos, por pertencerem ao “ethos burguês”. Com isso, “deu-se um belo impulso à tendência inata que todos temos de prevaricar”.

Com os dados disponíveis hoje, que consistência o senhor vê num eventual processo de cassação de Severino Cavalcanti?

Não conheço os fatos, como seria necessário, para poder ajuizar a procedência da acusação feita ao presidente da Câmara. Então, não posso me pronunciar a respeito. Seria leviano. Agora, o presidente da Câmara responde, como qualquer deputado, pela sua conduta dentro e fora da função. A regra universal – não se aplica apenas ao Parlamento brasileiro – é que o presidente da Câmara dos Deputados, ou do Senado, é primus inter pares (o primeiro entre iguais). Ele é um deputado como outro qualquer. A tradição é que lhe confere respeitabilidade, que o coloca acima dos seus pares, que quase sempre lhe concedem tratamento cerimonioso. Ele não tem senão as atribuições que estão no regimento. Quanto ao mais, o tratamento que lhe é reservado, em termos de responsabilidade política e penal, é o mesmo dos demais deputados.

O senhor acha que ele deve se afastar da presidência enquanto se investigam as denúncias?

É difícil responder a essa pergunta sem conhecer os fatos. O presidente é o garante da ordem e regularidade dos trabalhos da Câmara. A função dele não é como a dos secretários nem a de um vice-presidente. Ele resolve, diz o regimento, com suprema autoridade, todas as questões que lhe são submetidas. Então, ele não se deve intimidar com qualquer aleivosia. A gente sabe que nas assembléias, nos órgãos colegiados, isso acontece muito. Por pura emulação, por inimizade, por razões às vezes inconfessáveis, os dirigentes são ou insultados ou acusados de alguma coisa que não tem fundamento. Pode acontecer com ele. Armações existem. Ele é o juiz disso. Reconheço que é uma acusação séria, que, se comprovada, poderia retirar-me do cargo. De outro lado, se permaneço no exercício da presidência, dificulto o esclarecimento dos fatos. Então, para facilitar a apuração, resolvo me afastar. É um julgamento pessoal dele.

No caso de ele sobreviver como presidente da Câmara e continuar alvo de acusações, com o Executivo sendo também constantemente questionado na sua probidade, há a possibilidade de isso se transformar num problema institucional?

Não. Penso que todas as soluções para crises desse tipo estão na Constituição. O Brasil enfrentou um fato raro na vida das nações modernas, que é o impeachment do presidente da República, e não se quebrou uma vidraça.

Mas naquela época o Parlamento estava relativamente intacto. Hoje, ele é alvo, também.

Ele está intacto. Não se esqueça que logo depois do impeachment do presidente (Fernando Collor), cassaram-se e renunciaram-se a mandatos, porque alguns dos que impediram o presidente também tinham contas a prestar. Mas o Parlamento também estava, de certa maneira, sendo pressionado. Mas não aconteceu nada, como não vai acontecer. Todas as soluções estão na Constituição. A existência de um governo moralmente fraco não é necessariamente um indicador de que as instituições não funcionem. Podem funcionar pouco, funcionar mal, mas funcionam. A abulia é até tolerável. A acefalia dos poderes públicos é que é causa de crise institucional. Mas no nosso sistema constitucional, a acefalia é impossível, porque todo chefe de poder tem um substituto imediato e tem prevista a forma da sua sucessão. E a Constituição não está sofrendo ameaça de ninguém.

A situação de Severino – quer ele se licencie ou não – não prejudica a capacidade da Câmara de investigar e julgar as denúncias de corrupção?

De maneira nenhuma. A Câmara é um órgão colegiado. Unipessoal é o órgão do Poder Executivo, que é o presidente da República. Os ministros são apenas auxiliares. Na Câmara e no Senado, cada deputado e cada senador é órgão primário de um colégio. Tanto que nenhum deputado representa a Câmara em juízo. Quem faz isso é a mesa. Suas atribuições são exercidas dentro do colégio e nos limites do regimento. E se ele se licenciar, o vice-presidente assume integralmente. Ele não assume pela metade. Exerce as mesmas atribuições que o presidente efetivo, tem a mesma autoridade que ele e encaminha tudo de acordo com a Constituição e o regimento.

Em termos práticos, o presidente da Câmara não tem interferência sobre a atuação das CPIs ou sobre a eventual votação de um impeachment do presidente da República?

No Senado e na Câmara, os plenários são soberanos.

O fato de o presidente da República e o presidente da Câmara representarem, pelo menos simbolicamente, o mesmo estrato social, e ambos sofrerem uma débâcle no campo moral, afetará a visão da sociedade sobre a participação política desse estrato?

O risco existe. Sempre fomos, num certo sentido, propensos a acreditar que não bastam qualidades morais aos representantes políticos. Eles teriam de ter virtudes intelectuais. Desde sempre o analfabeto foi alijado da participação política. Essa tendência a desvalorizar as virtudes morais para o exercício das funções políticas é antiga. Acredito que, se o impeachment do presidente da República e a cassação do mandato do presidente da Câmara vierem a acontecer, vão surgir as vozes que vão querer pôr na lei a exigência do diploma de curso superior para ser presidente, deputado e senador, e do segundo grau para vereador, imaginando que isso qualifica as pessoas ao exercício do mandato político. Mas acho que é um grande erro.

Nesse caso, o que se está questionando são as virtudes morais dos dois. Para alguns, isso vai se somar aos questionamentos prévios sobre suas virtudes intelectuais?

O torneiro mecânico que é presidente da República parece que não tem gosto pela administração pública. Mas, em todo caso, a condução da economia eu diria que é brilhante. Os resultados são bons. E é isso que interessa ao País. Este governo, como muitos governos passados, não entendeu ainda que o que promove a igualdade dos cidadãos é a boa prestação dos serviços públicos – educação, saúde, transporte. Esses serviços estão uma droga.

Quando ambos manifestaram tolerância por deslizes éticos, com Lula dizendo que o PT fez o que todos faziam, e Severino desmerecendo a gravidade do caixa 2 de campanha, eles falavam em nome de seu estrato social, ou essa tolerância é um problema nacional?

É geral. Claro que há exceções. Infelizmente, essa anomia moral tomou conta do País já há bastante tempo. Acho que o grande pecado da esquerda – a direita também tem os seus – foi ter transformado em epifenômenos o direito e a moral. Quer dizer: não existem limites invioláveis para a conduta humana.

É a visão de que o fim justifica os meios?

É. Na hora em que se ensinou a gerações e gerações, desde que o marxismo entrou como disciplina nas escolas do Brasil, que direito e moral são epifenômenos, e as pessoas absorveram, deu-se um belo impulso à tendência inata que todos temos de prevaricar.

O senhor acha que os ataques que o presidente Lula fez às elites chegam a contrapor duas visões de país e de ética?

Acho que não. Confesso que as pessoas mais retas que conheci eram humílimas. A retidão, a decência freqüentam mais os pobres que os ricos. Mas creio que a visão é a mesma em toda a sociedade. Embora uma elite doutrinária tenha absorvido a idéia da relativização da moral, dos direitos e dos costumes. Essa é uma elite acadêmica.

Originalmente, o presidente Lula não pertence a esse estrato.

Não. Embora o PT se tenha convertido num partido de universitários.

E o presidente incorpora esse discurso em alguns momentos.

Exato. E o governo dele tem essa orientação. No fundo, é um partido totalitário. De tudo o que a gente está vendo, o relevante não é a infração a certas regras de probidade administrativa de bens e recursos públicos. É um assalto ao poder através da corrupção.

E aí houve uma aliança exótica entre uma vertente de esquerda e o fisiologismo tradicional no Brasil?

Isso. O populismo e o fisiologismo. Esses teóricos sempre maldisseram da organização burguesa da sociedade, do ethos burguês, que é apenas a moral do senso comum. 


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