Novo ministério demanda sensibilidade, diz Cardoso

Para o chefe da Casa Militar, as Forças terão de sentir-se beneficiadas profissionalmente

A extinção dos ministérios militares e a criação do Ministério da Defesa vão requerer habilidade e sensibilidade, tanto por parte do governo quanto por parte das Forças Armadas. Para que o rebaixamento do cargo mais alto das Forças – de ministro para comandante – não represente desprestígio para os militares, eles terão de se sentir beneficiados profissionalmente pela mudança. É o que afirma o general Alberto Cardoso, chefe da Casa Militar da Presidência da República. No cargo desde o primeiro mandato de Fernando Henrique, o general Cardoso é uma importante ponte entre os militares e o presidente.

Estado – Qual o significado da criação do Ministério da Defesa?

Alberto Cardoso – Pela primeira vez na história, as Forças Armadas brasileiras deixarão de ter uma representatividade própria de nível ministerial. Isso é um fato histórico que tem, na minha opinião, duas vertentes: uma política e outra estritamente profissional. Os ministros militares são servidores do Estado, como comandantes das Forças Armadas, e ao mesmo tempo ministros do governo. Como comandantes das Forças, chegam-lhes todas as reivindicações delas; como ministros do governo, eles próprios têm que fazer a triagem desses problemas para o encaminhamento no nível governamental. Com a criação do Ministério da Defesa, os chefes das Forças serão apenas comandantes delas. Não terão esse duplo encargo que muitas vezes se torna uma dicotomia. Nesse aspecto, me parece que profissionalmente vai ser melhor para as Forças Armadas. E o problema político das Forças Armadas será encaminhado, analisado por um ministro, que também é só ministro.

Estado – Mas esse ministro será visto também como um intermediário…

Cardoso – Aí se põe então um caminho delicado entre o comandante da Força e o ministro, que vai requerer muita habilidade e sensibilidade, de ambas as partes, em levar as reivindicações e saber fazer a triagem, sem que se crie uma situação de dicotomia. Com certeza, na maneira brasileira de ser, se resolve isso.

Estado – Até que ponto é uma queda de prestígio para as Forças Armadas?

Cardoso – Logicamente, esse caminho que existia com o ministro militar vai sofrer uma modificação, mas ela não pode repercutir para a tropa como uma queda de prestígio, mesmo porque tem tudo para não ser. Há que se entender a maneira de pensar militar, a alma militar, que tem muito a ver não com prestígio pessoal, mas da instituição. É importante, também, que as Forças Armadas se sintam beneficiadas profissionalmente pela criação do Ministério da Defesa. Não basta dizer que vai ser bom ter um chefe que cuida apenas do comando da Força. É preciso que as Forças Armadas na ponta da linha percebam que houve mudança para melhor – em relação até mesmo ao atendimento de suas necessidades, sejam institucionais, sejam até as pessoais. É preciso que as Forças Armadas sintam que o sistema de defesa nacional estará sendo otimizado pelo Ministério da Defesa. Ou seja, é importante que se vejam resultados.

Estado – Como se daria essa otimização?

Cardoso – A otimização passa não só pela integração de algumas atividades, mas também por uma unificação da doutrina das três Forças, pelo estabelecimento de hipóteses de emprego que realmente façam convergir os planejamentos. Espera-se que, dada a otimização de recursos orçamentários pela integração de algumas atividades, seja reservada alguma coisa para o reequipamento das Forças Armadas. E, finalmente, que tudo isso resulte numa preparação das Forças que satisfaça profissionalmente os seus componentes.

Estado – Os militares se ressentem da pouca importância que a sociedade dá ao problema da defesa. Caberia ao governo ou ao Congresso tornar esse debate mais ostensivo?

Cardoso – Caberia a vários organismos, inclusive às Forças Armadas. Durante muito tempo, a própria sociedade se acomodou à idéia de que defesa é problema dos militares. Só recentemente, começou-se a discutir isso no Congresso e na academia. E nós, militares, passamos também a admitir que aquilo não é monopólio nosso.

Estado – Na reelaboração do conceito de segurança nacional para um conceito de defesa do Estado, existe uma discussão quanto à possibilidade de as Forças Armadas avançarem ao ponto de defenderem o Estado de Direito, mais do que o Estado, simplesmente. Por exemplo, em temas como o do MST, essa discussão aflora. Como o senhor vê essas gradações de conceito?

Cardoso – A doutrina de segurança nacional sempre existiu. Com esse nome ou com outro, sempre houve uma doutrina de preocupação com a segurança nacional. Em determinado momento, e é nesse momento que fica caracterizada essa doutrina de segurança nacional de que tanto se fala, surgiu a figura do inimigo interno, que era um vetor da guerra fria, pessoas que seguiam determinada ideologia, no caso, o comunismo. De ambos os lados sempre houve exageros, tanto que se chegou à confrontação armada. Então, essa foi uma das doutrinas de segurança nacional que prevaleceram durante a guerra fria. Acabada a guerra fria e esmaecido esse conceito do inimigo interno, passou-se para o que hoje estão chamando de defesa do Estado de Direito. É até um dos sete objetivos da Política de Defesa Nacional. Sempre se imaginou estar defendendo o Estado de Direito. Hoje, o conceito de Estado de Direito que prevalece é esse que temos aí: eleições diretas, a busca da diminuição das injustiças, os três poderes funcionando harmônica e autonoamente – todas as manifestações da democracia brasileira. E as Forças Armadas sendo preparadas para eventuais empregos nesse sentido. O artigo 142 da Constituição diz que a destinação principal é a defesa da Pátria, ou seja, defesa externa. Mas abre ali também para a manutenção e restabelecimento da lei e da ordem, por iniciativa de um dos poderes constitucionais. E elas se preparam para isso, sem que haja o inimigo interno. Essa caracterização deixou de existir.

Estado – O sr. poderia citar exemplos de ações de manutenção da lei e da ordem?

Cardoso – O emprego do Exército brasileiro no sul do Pará para evitar conflitos entre sem-terra e proprietários; na garantia da lisura das eleições, e coisas desse tipo, acontecerão. Pode acontecer, ainda pela Constituição, de um determinado governador de Estado considerar esgotados os seus recursos de manutenção da lei e da ordem e pedir auxílio das Forças Armadas ao presidente da República. Nós tivemos um exemplo claro disso em 1997: naquelas greves das polícias em vários Estados, o Exército foi colocado à disposição para restabelecer a lei e a ordem. Da mesma forma, as Forças Armadas são empregadas em ações subsidiárias, como entrega de alimentos no Nordeste, abertura de estradas, etc. Eu diria que apenas mudou o fato de que não há um inimigo interno.

Estado – O senhor vê o crime organizado como uma ameaça ao Estado?

Cardoso – Constantemente, no Brasil, estão fazendo tábula rasa das nossas fronteiras, drogas passando de um lado para o outro, alimentando aqui os nossos dependentes. Você tem permanentemente o princípio da autoridade, que é básico em qualquer Estado, sendo esvaziado, sendo ferido, seja pelo próprio escárnio das organizações, seja pela própria corrupção de autoridades. Temos o tecido da sociedade esgarçando-se pela dissolução dos costumes e da família e pelo enfraquecimento da vontade dos jovens. Então, sem querer ser radical e querer ver em tudo uma ameaça ao Estado, temos três fatores que caracterizam o perigo para o Estado brasileiro.

Estado – A percepção de ameaça ao Estado justificaria o engajamento das Forças Armadas?

Cardoso – Justificou uma diretriz do presidente, de fevereiro de 96, definindo a forma de emprego das Forças Armadas contra o crime organizado, especificamente contra o narcotráfico, em apoio às polícias, particularmente a Polícia Federal – apoio logístico, comunicações, inteligência e, quando se justificar, apoio com tropas. Não engajar as Forças Armadas no cotidiano, que é perigoso, porque elas são preparadas especificamente ou preponderantemente para a defesa da pátria e, portanto, em ações regulares.

Estado – Para aniquilar o inimigo, destruir alvos?

Cardoso – Exatamente. Ter essa força agindo policialmente não é bom e não se pretende isso.

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