‘Novo’ PT resiste ao encontro com velha esquerda

No Fórum São Paulo, em Antigua, moderação petista destoou dos radicais do continente

 

 

ANTÍGUA – O PT teve um encontro com seu passado essa semana na cidade de Antígua, na Guatemala, construída no século 16 pelos colonizadores espanhóis. Nesse cenário nostálgico, em que se realizou o 11.º Encontro do Fórum de São Paulo, instância de debates das esquerdas da América Latina fundada por Luiz Inácio Lula da Silva em 1990, o compromisso do PT com a moderação e com as responsabilidades de governo foi submetido a um duro teste. E ele passou.

A eleição de Lula foi saudada pelos esquerdistas latino-americanos – uma diversificada fauna composta de ex-guerrilheiros da América Central, comunistas e militantes mais moderados, que disputam o poder com reais chances em países mais avançados como o México e a Argentina – como o maior triunfo já vivido por eles, considerando as dimensões do Brasil e as origens genuinamente operárias de seu presidente eleito.

Entretanto, passada a euforia, nos workshops e nos corredores do Hotel Santo Domingo, instalado num antigo convento, os “companheiros” latino-americanos delimitavam o território no qual a eleição de Lula deveria se confirmar como vitória da esquerda.

“No Chile, não estamos dispostos a ser administradores do modelo neoliberal, que inclui compromissos com a austeridade fiscal, os contratos de privatização e o pagamento da dívida externa”, afirmou Julio Bernardo Ugas, do Partido Comunista chileno. “Esses compromissos não fazem sentido em países espoliados como os nossos, que já pagaram a dívida externa duas vezes.”

Preocupação – “Pelo menos para o Chile, o caminho da esquerda não é esse tipo de capitalismo”, asseverou o dirigente do Partido Comunista, cuja candidata, Gladys Marín, teve modestos 3,2% dos votos na eleição presidencial de dezembro de 1999. “Estamos bastante preocupados com que o povo não seja frustrado em sua expectativa de mudança. O Brasil é o auge para a esquerda da América Latina pela possibilidade de mudança que representa.”

“O que define a esquerda é ser anticapitalista, antineoliberal, é a busca de transformações radicais”, opina Ugas. “É claro que isso deve ser feito de acordo com a correlação de forças. Mas não se pode esquecer que a direita representa o capital e a esquerda, a aspiração de mudança.”

Rodrigo Chaves, coordenador nacional dos Círculos Bolivarianos, que mobilizam a população no apoio ao presidente venezuelano, Hugo Chávez, acha que a esquerda “não tem de fazer concessões, caso contrário, deixa de ser esquerda”. Segundo Chaves, “há coisas que não se podem conceder em países como os nossos”. Na Venezuela, diz ele “80% da população é excluída, e com setores privilegiados – empresas, sindicatos, Igreja, bancos, partidos políticos e meios de comunicações – que ultrajaram o país, seus recursos e sua gente, e enriqueceram de maneira grotesca”.

O Brasil, opina Chaves, “terá que escolher seu caminho, e cabe ao presidente e ao partido tomar decisões que não deixem de lado aquilo pelo qual lutaram toda a vida”. Em resposta a esse tipo de suspeita, Paulo Ferreira, vice-presidente estadual do PT do Rio Grande do Sul e membro do diretório nacional do partido, disse, em discurso no plenário do encontro, na terça-feira, que a vitória de Lula demonstrou “nossa capacidade de diálogo, sem prejuízo de reformas radicais”.

Há visões simpáticas à travessia do PT rumo ao poder. “Não se deve reduzir a vitória de Lula à questão das alianças ou a um trato profissional da imagem. As pessoas no Brasil votaram pela mudança”, diz o ex-senador Mario Saucedo, secretário de Relações Exteriores do Partido Revolucionário Democrático (PRD), liderado pelo prefeito da Cidade do México, Cuauhtémoc Cárdenas, derrotado três vezes em disputas presidenciais. “A aliança foi muito importante e não entra em choque com as propostas fundamentais do programa de governo.”

Na interpretação do uruguaio Niko Schvarz, da Frente Ampla, a aliança do PT com a centro-direita e os seus compromissos com a responsabilidade fiscal e com o cumprimento dos contratos não devem ser qualificados de “moderação”, termo que soa pejorativo para a esquerda. “Lula liderou uma aliança de amplitude enorme, que deve ser um recorde mundial”, admite Schvarz. “Mas tudo isso se faz para poder pôr em prática um programa de mudança.” Tabaré Vázques, líder da Frente Ampla, chegou muito perto da vitória em novembro de 1999, com 45% dos votos em segundo turno, vencido pelo presidente Jorge Batlle.

A aliança de Lula com o senador José Alencar, o mais bem-sucedido empresário da indústria têxtil, um setor que quase desapareceu do Cone Sul com a abertura comercial, repercute no imaginário nacionalista da esquerda. “José Alencar representa um setor importante do capital nacional, que quer desenvolver a indústria local, criar postos de trabalho e afirmar a soberania nacional”, elogia Schvarz.

“Não critico os compromissos assumidos por Lula”, diz a deputada Marcela Bordenave, da Afirmação por uma República Igualitária (ARI), o mais importante partido de esquerda da Argentina, liderado por Elisa Carrió, a Lilita, candidata à presidência pela segunda vez. “Não defendemos o não-pagamento da dívida, mas uma análise para ver o que é legítimo e o que não é.”

Quanto à abertura do leque de alianças, a esquerda argentina não atingiu ainda sequer a própria unidade. Ela parte para as eleições do ano que vem fragmentadas, com o ARI de um lado e a Esquerda Unida, que tem como candidata Patricia Bullrich, de outro. Pesquisa do instituto Ipsos-Mora y Araujo indica 16,2% das intenções de voto para Lilita e 1,7% para Bullrich. Juntas, ultrapassariam o primeiro colocado, Adolfo Rodríguez Saá, que tem 17,3%.

“Nossas diferenças com os comunistas não são sequer ideológicas, mas por mesquinharias e personalismo”, lamenta Marcela. “Estamos no começo de um processo de unidade das esquerdas e naturalmente a vitória no Brasil nos anima a levá-lo adiante”, completa Patricio Echegaray, deputado pela Esquerda Unida, frente que inclui o Partido Comunista, do qual é secretário-geral.

“O PT fez um arco muito amplo de alianças para chegar ao governo, que nos parece um caminho absolutamente correto, porque procurou agrupar os excluídos, os pobres, os trabalhadores com emprego, a classe média e o empresariado contra as políticas neoliberais”, celebra o deputado.

O líder sandinista Daniel Ortega também considera natural a aliança com o empresariado nacional. “A esquerda tem mostrado que pode ser fator de aglutinação de diferentes forças econômicas e sociais agredidas pelo projeto neoliberal”, avalia. Segundo o ex-comandante guerrilheiro e ex-presidente, nas últimas eleições, a Frente Sandinista também recebeu o apoio de empresários e de grandes produtores agropecuários, que estão perdendo suas terras por não conseguir pagar as dívidas com os bancos. “Gente que era muito anti-sandinista agora se está juntando a nós.”

Ortega, no entanto, que enfrentou os contras financiados pelos Estados Unidos, tem dúvidas sobre “até onde o governo americano vai respeitar a vontade do povo brasileiro ou vai querer converter a esquerda em administradora de suas políticas”. Na eleição de novembro do ano passado, o então embaixador americano, Oliver Garza, e o governador da Flórida, Jeff Bush, irmão do presidente dos EUA, pediram abertamente aos nicaragüenses que não votassem nos sandinistas, porque isso comprometeria a cooperação de Washington com o país.

Na Bolívia, a interferência do embaixador americano teve efeito contrário, ajudando a levar para o segundo turno o líder cocaleiro Evo Morales, que quase venceu a eleição. Na Nicarágua, explica Ortega, a memória da guerra está fresca demais e as advertências americanas disseminaram medo.

Assim como os nicaragüenses, os salvadorenhos e os guatemaltecos também têm experiências muito recentes e traumáticas de intervenção americana e confronto armado. A Unidade Revolucionária Nacional Guatemalteca (URNG), anfitriã do 11.º Fórum, manteve guerra civil de 36 anos contra as forças de direita do país, apoiadas pelos EUA, que só acabou com o acordo de paz de dezembro de 1996 – há apenas seis anos.

“Aqui, há partidos que estiveram na luta armada durante muitos anos e que cultuam heróis guerrilheiros”, diz o deputado Paulo Delgado (MG), representante do PT no Fórum. “Nosso desafio é o de evoluir de uma cultura do heroísmo pelas armas para uma construção coletiva e democrática da vitória.”

“Há uma intransigência de alguns grupos, que são minorias ruidosas em seus países”, avalia Delgado, vice-líder do PT na Câmara. “Nosso objetivo aqui é baixar o decibel do diálogo político. Tenho participado de conversas bilaterais para explicar que há uma nova situação.” Fundador do Fórum e vitorioso no Brasil, o PT deu uma de irmão mais velho. “O PT tem a responsabilidade e o cuidado de despertar uma esperança que possa ser realizada”, explica Delgado. 

 

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