O desafio da padronização do custo

Dificuldade de pré-determinar o preço dos tratamentos agrava problemas do setor

 No caos anterior à regulação, os convênios reajustavam suas mensalidades como queriam e cabia ao usuário lutar por sua revisão nas entidades de defesa do consumidor e na Justiça. A situação se inverteu. Agora, são as empresas que têm que lutar na agência reguladora, se quiserem aumento além daquele que a ANS concede anualmente.

A revisão técnica, que só se aplica às carteiras deficitárias, e não à totalidade dos usuários da empresa, pode assumir três formas: a aplicação pura e simples do índice sobre as mensalidades; metade do índice mais uma revisão da rede credenciada e adoção de acomodação mais barata nos hospitais, sem perda de qualidade e de capacidade de atendimento; metade do reajuste e co-participação dos usuários no custo de alguns procedimentos, segundo tabela aprovada pela agência.

Duas operadoras conseguiram esses reajustes extraordinários: as Classes Laboriosas (22,35%) e a Interclínicas (21,04%). O Idec entrou na Justiça contra essas duas revisões, com pedido de liminar para proibir a agência de conceder novas revisões até que fosse julgado o mérito da ação. A juíza Luciana da Costa Aguiar Alves, da 15.ª Vara Cível de São Paulo, negou o pedido, argumentando que a insolvência das operadoras prejudicaria os usuários – 400 nas Classes Laboriosas e 370 mil filiados nas Interclínicas.

“Se, sem revisão técnica, as empresas vão quebrar, que quebrem, porque não souberam administrar e estão prejudicando o consumidor”, contesta Andrea Salazar, invocando as leis de mercado. “O risco da atividade econômica deve ser do fornecedor do serviço. Quando o lucro aumenta, ninguém repassa nada para o consumidor, até porque ele não é acionista.” A advogada do Idec diz que havia indícios de má gestão nas Classes Laboriosas, mas que a ANS não se preocupou com isso e repassou o problema para o consumidor, para salvar a empresa.

“Não apareceu problema de má gestão”, assegura o presidente da ANS. “É uma autogestão, uma associação com dirigentes eleitos. Se encontrarmos indícios de má gestão, de fraude, vamos encaminhar para o Ministério Público.” Desde a introdução do dispositivo da revisão técnica, em junho de 2000, foram feitos quatro pedidos. Dois estão em análise. “O próprio mercado não gosta dele e não usa, porque a agência faz verdadeira intervenção na operadora”, diz Januario Montone. “Olha todas as carteiras, porque não queremos que o plano individual financie o coletivo, cuja margem de ganho é melhor.”

Antes da regulação, outro grande problema para os usuários de planos de saúde eram os aumentos astronômicos para os mais velhos. “As pesquisas que temos da época mostram que o preço máximo chegava a 31 vezes o preço de ingresso”, declara Montone. A partir de 1998, a lei permite aumento de 500% – ou seis vezes –, diluído em sete faixas etárias. As operadoras distribuem esses reajustes como querem e, entre os jovens, diz Andrea Salazar, os aumentos ficam na casa dos 5% a 10%, enquanto dos 59 aos 60 anos, por exemplo, chegam a 200%.

“Nas três, quatro últimas faixas, sobe mais porcentualmente, mas tem que estar no contrato do produto registrado na ANS”, responde o presidente da agência. “Se compro um plano para meu filho, sei quanto ele vai pagar até os 70 anos – e não é índice, é valor.”

As operadoras são obrigadas a oferecer aos usuários com doenças preexistentes um plano mais caro como alternativa à carência de 24 meses. É a chamada opção de agravo. Mário Scheffer enviou à ANS estudo que mostra que as operadoras não estão oferecendo essa opção, com os nomes de todas as operadoras. “Não tivemos nenhum retorno”, diz o representante do CNS. “Há multa alta para isso.” Januario Montone diz que a agência está apurando: “Já temos mais de 50 diligências instaladas.”

Aqui, mais uma vez, o empecilho apontado pelas empresas é a dificuldade de estipular o custo do tratamento da doença preexistente. “Nos Estados Unidos, que são o modelo deles, sempre mediram os custos”, provoca Regina Parizi. “Sempre dizem que saúde não tem preço, mas tem custo. Então, que definam o custo.”

O presidente da Abramge, Arlindo Almeida, reconhece que o setor no Brasil ainda tem de avançar nesse sentido. “Um cálculo atuarial mais preciso dará mais previsibilidade e permitirá baixar o custo.” Nos Estados Unidos, os custos dos procedimentos foram padronizados por meio de um método chamado de manage care (gestão do atendimento).

O que o possibilitou foi um acordo geral entre operadoras, hospitais e entidades médicas quanto ao número médio de consultas, exames e intervenções necessário para cada caso. Não foi fácil. Os médicos encaram esse tipo de iniciativa como violação de sua autonomia. Em caso de erro, eles é que responderão na Justiça. “Só o médico, como parceiro da empresa, pode estabelecer o sistema de custo”, contemporiza o presidente da Abramge.

Mesmo tendo superado essa etapa, nos EUA, ainda se calcula que o desperdício – na solicitação de procedimentos supérfluos, que dão margem extra de segurança ao médico – esteja na casa dos 30%. Segundo Almeida, a média de consultas por usuário dos convênios no Brasil é de seis ao ano, quando a Organização Mundial de Saúde recomenda quatro. A cada 100 consultas, a OMS prevê 70 exames, em média; aqui, são 110. “Um terço nem vai buscar o resultado no laboratório”, reclama o representante dos convênios.

Regina Parizi descreve a regulação como um triângulo, formado pelas relações entre as operadoras e os usuários; entre os usuários e os médicos; e entre os médicos e as operadoras. A agência tem buscado regular a relação operadora-usuário; entre o médico e o paciente, está o Código de Ética Médica.

O ponto fraco, acha Regina, está na relação entre os médicos e as operadoras, baseada em convênios verbais. As empresas, afirma ela, impõem restrições a pedidos de exames e procedimentos que muitas vezes são incompatíveis com a situação do paciente. “Isso é insuportável para o médico”, exaspera-se Regina. “Se ele puder, descredencia-se, mas, muitas vezes, não pode, por questão de sobrevivência; tenta maneirar, faz controle pelo telefone e pode acabar tendo de responder aqui (no CRM).”

A agência, conclui Regina, “regula a relação paciente-operadora, mas quem faz atendimento é o médico, não a operadora”. A discussão estará na pauta de uma das próximas sessões mensais da Câmara de Saúde Suplementar.

“É positiva a criação de um espaço de normatização dessas operadoras nesse mercado”, avalia Regina. “Se a situação é difícil, porque a regulamentação não atende às necessidades e aos interesses da sociedade, antes era pior ainda.”

“A agência tem um papel delicado de mediação”, reconhece a presidente do CRM, calejada com a experiência de regulação de sua própria categoria. “As operadoras são muito fortes economicamente, a classe profissional é bastante articulada e a clientela é a classe média formadora de opinião.”

Nesse ambiente, o diálogo de surdos – em que um repete exatamente o que o outro disse, mas como premissa do argumento contrário – pode não ser necessariamente um mau sinal. “O equilíbrio está em que ninguém ganhe nem perca muito”, conclui a presidente do CRM. “Se um dos lados estiver plenamente contente, a agência não estará cumprindo sua função.”

Deixe o seu comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

*