O Lula que venceu

Depois de um longo percurso, ele recupera o espírito do rapaz que só queria vencer na vida

 

 

Uma das decisões mais difíceis da vida de Lula, a de se candidatar a presidente pela quarta vez, veio acompanhada da seguinte condição: “Dessa vez, será do meu jeito.” As diretrizes das três campanhas anteriores tinham sido definidas pelo PT. Na de 1994, por exemplo, havia três coordenadores, representando as principais correntes ideológicas do partido. Era como se o PT fizesse campanha para si mesmo, não para vencer.

No seu discurso de 26 de novembro aos dirigentes sindicais, Lula descreveu como se foi liberando das amarras até chegar à vitória: “Cada vez que eu perdia, falava ‘vamos nos preparar mais, conversar mais, abrir mais o nosso leque de alianças, vamos tentar pegar outros setores da sociedade, vamos pegar outra gente que pensa que não gosta de mim e eu penso que não gosto dela e vamos conversar’.”

Esse raciocínio resultou na aliança com o senador José Alencar, do PL, o maior empresário da indústria têxtil do País. Sua escolha como vice foi a decisão mais importante desta campanha, na visão de Lula. Num certo sentido, ao se liberar das amarras partidárias e ideológicas que o prendiam, Lula voltou à sua origem e ficou mais parecido consigo mesmo.

Quando, em 1968, seu irmão José Ferreira da Silva, o Frei Chico, convidou-o para participar do Sindicato dos Metalúrgicos, Lula disse que preferia ver novela, namorar e jogar bola. “Isso não tem futuro”, dizia. “Eu queria ser um bom profissional, ganhar meu salário, viver minha vida, ter filhos”, recordou Lula, no livro O Filho do Brasil. “Nada disso de ser liderança sindical me passava pela cabeça.”

Aceitou o convite, mas entrou como diretor de base e continuou a trabalhar na fábrica da Villares. Foi a morte de sua primeira mulher, Maria de Lurdes, grávida do primeiro filho, que fez com que ele se engajasse. Lula tomou gosto pelas disputas do sindicato, mas continuou desprezando política partidária e ideologias.

“Lula odiava política até 1980”, lembra Frei Chico. Foi outra tragédia pessoal, a prisão e tortura do irmão, militante comunista, que despertou em Lula a revolta contra o regime.

Esse sentimento, aliado à constatação de que os trabalhadores precisavam de representantes no Congresso, levou-o a fundar um partido. Mas, mesmo no comando do PT, que abrigou um mosaico de grupos ideológicos, Lula nunca se filiou a um grupelho dogmático. Aliás, ter pairado sobre eles é um dos motivos pelos quais se manteve como líder máximo do partido ao longo de quase 23 anos de existência.

Sua corrente, a Articulação, caracterizava-se pela falta de definição sobre o que entendia por socialismo. “Na verdade, o socialismo de Lula era um humanismo carregado de religiosidade”, que expressava seu anseio por “uma sociedade mais justa”, que se acreditava que o capitalismo nunca proporcionaria, analisa Denise Paraná.

“Lula lançou mão da ideologia de forma muito pragmática”, avalia Marco Aurélio Garcia, que, como assessor internacional do PT, fez diversas viagens com o presidente. “Ele nunca foi dogmático, nunca adotou posições extremadas”, diz Frei Betto. Em novembro, Lula declarou aos sindicalistas: “Só pode dizer que não muda de idéia quem não tem idéias.”

A imagem raivosa atribuída a Lula não é fruto do imaginário, mas da luta contra um empresariado habituado ao peleguismo e, em última análise, contra a ditadura, num período em que a greve era proibida. Talvez a expressão mais gráfica dessa rebeldia tenha sido a barba de Lula – ícone copiado no movimento estudantil e social. Até o fim dos anos 70, Lula só cultivava um bigode. A barba cresceu – para o desalento de sua mulher, Marisa – durante as greves e a prisão de 31 dias, em 1980. Perdurou, mas hoje é devidamente aparada.

Assim como a barba, o radicalismo do Lula dos anos 80 parece ter sido mais conseqüência das circunstâncias do que de sua natureza. Não combinava nem com seu tino pragmático nem com outro traço de sua personalidade: a cordialidade e o gosto pela amizade.

Já em sua primeira função pública, a de diretor jurídico do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, recebia associados com amabilidade, oferecendo cachaça. “Lula nunca perdeu uma chance de fazer amizade”, diz Denise Paraná, ex-assessora de Comunicação do PT.

Depois de uma infância marcada pela inibição, Lula passou a se notabilizar, na adolescência, pela capacidade de fazer amigos. O futebol, sua grande paixão, ajudou a converter o menino retraído num líder. “Eu tinha muita afeição dos meus companheiros”, lembra Lula em O Filho do Brasil. “Não é que eu tinha liderança, eu tratava todo mundo bem e o pessoal gostava de mim”, avalia. “Ele não abandona um amigo”, diz Jacinto Ribeiro dos Santos, o Lambari, que o conhece há 40 anos. “Se ele for tão bom presidente como é amigo, estamos bonitos.”

Lambari, que foi torneiro mecânico e hoje trabalha como motorista do PT, é um dos que melhor conhecem a faceta piadista de Lula. Os dois comemoraram juntos a vitória de Lula, na noite de 27 de outubro, bebendo uísque até as 2h30. Num dado momento, o presidente eleito perguntou ao amigo o que ele ia fazer no dia seguinte. “Nada”, respondeu Lambari. “Pois eu vou falar com o Bush”, esnobou Lula, que no dia seguinte receberia telefonema do presidente americano. Lula também passou a “ameaçar” o amigo: “Fica ligeiro que agora sou a autoridade máxima do País e te ponho na cadeia.”

A aversão aos dogmas e ao sectarismo, o espírito gregário e o bom humor se tornaram mais visíveis na última campanha, valendo-lhe o apelido de “Lulinha paz e amor”. Depois de eleito, essas facetas mais genuínas, a visão de mundo do homem comum, que tudo o que deseja para si e os seus é algum conforto e prosperidade, continuam a vir à tona.

Parece despertar em Lula o rapaz dotado de saudável individualismo capitalista que um dia ele se permitiu ser, antes que seu senso de solidariedade e seu gosto pela política ganhassem uma tintura esquerdista.

“Ao longo desses anos, nós fomos aprendendo a ser quase que pedintes dos governantes”, censurou, diante de seus companheiros sindicalistas, o presidente eleito, agora premido, do outro lado do balcão, pela escassez de verbas do Estado. “Lembro que, antes do Sistema Financeiro de Habitação, a gente não tinha o hábito de ficar esperando que o governo construísse casa para a gente”, recordou Lula, que se orgulha de já se ter mudado para a casa própria um ano depois de se casar, nas duas vezes em que o fez.

“A gente comprava um terreninho de 25 por 5 (metros), construía um quarto e cozinha e um banheiro sem rebocar, entrava dentro e depois a gente ia construindo as outras coisas. A casa ficava parecendo uma colcha de retalhos, mas era nossa, feita com o nosso suor”, enalteceu, para concluir: “Já fomos mais donos do nosso nariz.”

Nada mais distante do discurso estatista da velha esquerda. Nada mais próximo do rapaz que veio do sertão e venceu na vida.

 

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