O programa de Ciro e as críticas que ele provoca

Especialistas não conseguem sequer entender alguns pontos da proposta

 

Ciro Gomes começa seu programa de governo dizendo que se trata de uma proposta aberta à discussão. Talvez seja o trecho mais promissor desse texto de 27 páginas, redigido pelo filósofo Roberto Mangabeira Unger.

Ao esboçar sua estratégia de crescimento, a proposta diz que “a democratização das oportunidades econômicas cria ambiente favorável a uma dinâmica de crescimento em que cada quebra de limites da oferta, isto é, a capacidade de produzir, aumenta a pressão para fortalecer a demanda, ou seja, a capacidade de comprar, e cada fortalecimento da demanda aumenta a pressão para superar os limites – físicos, financeiros e humanos – da oferta”.

“Não consigo sequer entender o que ele quer dizer”, impacienta-se o economista Raul Velloso, especialista em contas públicas. “É um recurso à retórica quase musical, harmônico”, sorri Gilberto Dupas, professor de economia da Universidade de São Paulo. “Preferiria discutir com alguém da equipe dele que entenda de economia para saber o que quer dizer.”

Gilberto Dupas elogia a erudição de Roberto Mangabeira Unger. “Mas ele escreve desamarrado da própria realidade.” A falta de atenção ao mundo real se reflete em descuidos preocupantes para quem quer governar um país. “A única coisa impactante que vi no programa foi que o Estado-Maior das Forças Armadas estará na ‘vanguarda estratégica e tecnológica'”, diz Eliézer Rizzo de Oliveira, do Núcleo de Estudos Estratégicos da Universidade de Campinas.

“Não existe mais Estado-Maior das Forças Armadas.” Foi extinto há três anos, com a criação do Ministério da Defesa.

O item sobre a formação da Área de Livre Comércio das Américas (Alca) informa que “o Brasil insistirá em condicionar a integração comercial a políticas igualizadoras, seguindo nisso o modelo da Comunidade Européia e não o modelo do Tratado de Livre Comércio entre os Estados Unidos, o Canadá e o México (Nafta)”.

Os processos de integração têm três níveis: a zona de livre comércio, que elimina tarifas entre os países membros; a união aduaneira, que institui tarifa externa comum para o comércio entre os países do bloco e os outros países do mundo; e uma união do porte da européia, que caminha para uma federação.

“Nunca se discutiu, no âmbito da Alca, sequer a criação de uma união aduaneira”, testemunha Carlos Pio, coordenador do Departamento de Relações Internacionais da Universidade de Brasília. “Nunca existiu algo semelhante nem no Nafta, que já tem dez anos.” Não faz o menor sentido comparar a União Européia com o Nafta ou com a Alca, como se se tratasse de uma opção entre um “modelo” e outro.

O capítulo dedicado à reforma tributária começa com propostas praticamente unânimes entre os especialistas: a introdução de um Imposto sobre o Valor Agregado (IVA), a redução do Imposto de Renda sobre a Pessoa Física e a eliminação das contribuições que incidem sobre o faturamento bruto das empresas, como o PIS e a Cofins.

Em seu lugar, defende um tributo “sobre o consumo supérfluo ou o alto padrão de vida”, nos moldes daquele proposto em 1955 por Nicholas Kaldor (1908-1986). A um par de meses das eleições, o programa prefere não definir alíquotas. Diz apenas que seriam “altamente progressivas”. Mas no livro O Próximo Passo – Uma Alternativa Prática ao Neoliberalismo, escrito a quatro mãos em 1996, Ciro Gomes e Mangabeira Unger explicam que, “nos níveis superiores, há uma progressão rápida, com alíquotas que podem ser, como quis Kaldor, de 200% a 400%”.

A Índia e Sri Lanka submeteram-se ao experimento de Kaldor. O resultado foi queda na arrecadação, coisa que o próprio programa de Ciro reconhece que não pode acontecer no Brasil. “Quando se penaliza de forma extrema as classes de maior poder aquisitivo, incentiva-se a sonegação e a corrupção”, explica Gilberto Luiz do Amaral, presidente do Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário. “No mundo, já se ultrapassou esse critério e poucos países o adotam.” A definição de supérfluo ou essencial está sujeita à subjetividade e às mudanças constantes. E não é bom editar normas tributárias que se tenha de mudar a toda hora.

Um eventual governo Ciro Gomes deve “passar a calcular o imposto de renda das empresas globalizadas considerando sua realidade econômica, de modo a identificar e tributar a parcela dos lucros mundiais atribuíveis à pessoa jurídica brasileira sempre que tal parcela exceder os lucros apurados pela forma tradicional.”

“A frase é meio vaga”, reage o tributarista Guilherme Pereira das Neves, da Braga & Marafon Consultores e Advogados. “Não consigo ver maneira de implementar isso.” Desde 1997, o Brasil tributa lucros auferidos pelas multinacionais no exterior, de uma forma que já é considerada draconiana e que, segundo alguns, viola tratados internacionais firmados pelo País.

O programa prevê instituir na previdência contas individualizadas de capitalização, geridas de maneira profissional. Parte desse dinheiro serviria para comprar títulos da dívida pública e outra iria para a poupança interna.

Pouca gente duvida que fundos individuais de capitalização sejam uma boa forma de administrar a previdência ou que o Brasil precisa de poupança interna. Só que essa “solução” passa por cima do problema da Previdência brasileira: o fato de que estamos indo da mão para a boca, destinando o dinheiro dos contribuintes ao pagamento dos benefícios dos aposentados. E mesmo assim o dinheiro não dá, gerando déficit de R$ 42 bilhões anuais.

O economista André Lara Resende e o especialista em Previdência Francisco Barreto de Oliveira, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, apresentaram uma proposta desse tipo ao governo há mais de três anos. Foi polidamente devolvida. “É uma proposta ingênua, superada”, diz Raul Velloso.

“É como se alguém que tivesse aterrissado depois de passar um tempo em Marte abrisse um livro-texto e apontasse o sistema de capitalização.”

O que de mais atual saiu da equipe de Ciro, depois de colocar essa proposta de programa de governo na internet, foi a inclusão da taxa de desemprego ao lado do índice de inflação para balizar as metas da política econômica. A soma dos dois índices formaria uma “taxa de desconforto”, que deveria baixar ano a ano. Acontece que a política de juros do governo não é a causa da falta de crescimento econômico, adverte Raul Velloso. Tanto que a taxa básica, estabelecida pelo Banco Central, está em 18%, enquanto a do mercado oscila acima do patamar dos 20%. “Se não posso atribuir a desaceleração à taxa Selic, por que vou mudar a política? Só pela novidade, por uma coisa bonita, charmosa?”, pergunta o especialista em contas públicas. “O problema fundamental é de natureza fiscal.”

Tentativas – O Estado tentou ouvir Ciro Gomes sobre essas críticas dos especialistas, mas não foi possível. Sua assessoria informa, no entanto, que a proposta examinada aqui é provisória. Seus princípios se manterão, mas ela será “adensada” com a contribuição de novos assessores, como Maurício Dias David, que se licenciou do BNDES, e até membros da equipe econômica do governo, cujo nome não pode ser divulgado. 


 

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