O que faz uma lei dar certo ou fracassar

Para pegar, uma lei precisa, em primeiro lugar, ser razoável. Uma lei ilógica, estúpida, incoerente ou extravagante não tem por que pegar.

  

Além disso, ela tem que pertencer a seu tempo: vir no momento preciso em que a sociedade está preparada para ela e a deseja. E deve vir acompanhada dos meios adequados para o Estado impor o seu cumprimento.

 

 

“Os americanos não jogam bituca de cigarro na rua porque correm o sério risco de serem multados, e não porque são mais educados”, analisa o presidente do Instituto Brasileiro do Consumidor, Ubiratan Mattos. “Se fossem suficientemente educados, não haveria necessidade da lei nem da multa. Quando há sanção efetiva, a lei pega.”

“Quando a um crime se segue rapidamente uma punição, forma-se uma associação entre as idéias de crime e punição”, formulou o jurista italiano Cesare Beccaria (1738-1794). “A agilidade é mais importante do que a severidade da punição.”

Daí os efeitos devastadores das constantes anistias no Brasil, como a que o Supremo Tribunal Federal concedeu no mês passado para os crimes eleitorais.

“Nenhum candidato, ainda mais num processo competitivo como é o da eleição, vai deixar de pichar o muro, pensando: ‘Depois a gente resolve’ “, diz o especialista em direito público Floriano Peixoto Azevedo Marques. “A anistia retroalimenta a ineficácia da lei.”

Um dos exemplos mais consagrados de lei que pegou é o Código de Defesa do Consumidor, que completou 11 anos no mês passado. “Ele veio atender a uma aspiração dos mais variados segmentos da sociedade: consumidores, Ministério Público, os juízes e a imprensa”, enumera Mattos. “A lei pega quando vem de baixo para cima.”

Maria Ines Fornazaro, diretora-executiva do Procon de São Paulo, foi uma das que participaram da mobilização na Praça da Sé para reunir 1 milhão de assinaturas para incluir nas Disposições Transitórias o artigo que determinou a criação do código. Foi a saída encontrada, já que a Constituição estava ficando muito grande.

“Além do momento histórico correto, havia uma base real sobre a qual trabalhar: a comissão levantou (no Procon) as queixas mais comuns dos consumidores para criar as leis que as protegessem”, recorda Maria Ines.

“Essa base factual deu sustentação ao Código.”

Raul Telles, assessor jurídico da organização não-governamental Instituto Socioambiental, acrescenta um ingrediente para a lei pegar: o “capital social”, ou seja, “a sociedade organizada, mobilizada, que cobra seus direitos, que é proativa”. Ele lembra duas leis que não pegaram: o Código Florestal, de 1965, e a Lei de Política Nacional do Meio Ambiente, de 1981.

Essas leis tornavam a Justiça apta a punir crimes como atear fogo a floresta ou cortar árvore em área protegida. Mas eram pouco aplicadas. O Código Florestal previa reserva legal de 20% nas regiões Sul e Sudeste. Entretanto, a área preservada da Mata Atlântica, hoje, não chega a 8%. “O Ministério Público tinha os meios jurídicos, mas faltava o meio simbólico”, explica Telles. “Nunca ninguém se preocupou com elas.”

A questão ambiental ganhou notoriedade no Brasil depois da Conferência Rio-92. Veio a Lei de Crimes Ambientais, de 1998. Suas disposições não eram novas. “A lei falava a mesma coisa (que as anteriores), mas, devido ao momento histórico, as pessoas começaram a dizer: ‘Existe uma lei de crimes ambientais. Cuidado, agredir o meio ambiente agora é crime.'” Num processo paralelo, a partir da Constituição de 1988, o Estado foi-se capacitando para pôr as leis em prática, formando promotores especializados em meio ambiente, direito do consumidor, etc.

“A lei molda comportamentos sociais, mas, se a sociedade não estiver pronta, malha em ferro frio; se estiver, a lei pega”, observa Azevedo Marques, citando o exemplo da Lei do Divórcio, de 1977. Na sua opinião, a sociedade já estaria pronta para a equiparação ao casamento da união civil estável de casais heterossexuais. “Na prática, os juízes já a consideram, sem que haja lei”, diz ele. “Já entre os homossexuais provavelmente não seria bem aceita.

Se a sociedade não está no ponto, a lei bate e volta.”

Mas existe o problema inverso, também: o da lei feita para agradar ao público. É o caso do conceito de crime hediondo. “Tecnicamente, o crime hediondo não faz sentido”, sentencia o ciminalista Luíz Flávio Borges D’Urso. “É uma resposta à opinião pública. Quando não se tem como mexer na conduta, põe-se um adjetivo, aumenta-se a pena.”

Para o advogado Antonio Carlos Rodrigues do Amaral, crime hediondo é um contra-senso: “É como se dissessem que uns crimes são mais crimes que outros.” Depois da lei que o instituiu, em 1990, os seqüestros e tráfico de entorpecentes só aumentaram, diz Borges D’Urso. Mais uma prova do acerto da célebre frase de Beccaria: “O que diminui a criminalidade não é o tamanho da pena, mas a certeza da punição.”

Os exageros não são apenas inócuos: eles contribuem para difamar as leis, produzindo efeitos de longo prazo. O Código de Proteção à Fauna, de 1967, tornou matar animal crime inafiançável. Como o réu primário de homicídio pode responder em liberdade, propagou-se a anedota de que, ao ser flagrado matando um animal, valia a pena matar o fiscal.

A Lei de Crimes Ambientais, de 1998, acabou não só com o crime inafiançável como também com a idéia de que o réu deva ir necessariamente preso. “Ela parte do pressuposto verdadeiro de que grande parte dos crimes ambientais tem motivação econômica.” Não adianta prender um pobre que planta uma roça na beira de rio ou caça para comer. “Seria uma injustiça e uma inutilidade social.” Já em relação a fazendeiros e industriais, é mais interessante afetá-los no bolso, obrigar que eles reparem o dano, paguem multa e prestem serviço à comunidade, do que os colocar detrás das grades.

A velha Lei da Fauna está revogada. A anedota, no entanto, continua em vigor.

 

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