O que o Brasil de hoje tem a ver com o de 64 e com a Venezuela

A polarização e a aliança governo-movimentos sociais estão presentes nos três, mas aqui e agora não existem guerra fria, a politização das Forças Armadas e uma sociedade pouco diversa

A presidente Dilma Rousseff convocou a Brasília os movimentos sociais, como o grupo de mulheres camponesas chamadas “margaridas” e sindicalistas, para defender o seu governo da ameaça de impeachment. Essas mobilizações foram em parte custeadas por recursos públicos. Em um desses eventos, no Palácio do Planalto, o presidente da CUT, frente sindical filiada ao PT, afirmou que seus liderados irão às ruas “com armas na mão” para defender o mandato de Dilma. Esse cenário remete à Venezuela, onde os governos de Hugo Chávez e de seu sucessor, Nicolás Maduro, mobilizaram organizações sociais custeadas com recursos públicos para se manifestar a seu favor, algumas vezes entrando em confronto com manifestantes contrários ao governo. Manifestações pacíficas degeneraram em violência, por causa dessas “contra-manifestações”. Criou-se um pretexto para a polícia intervir e prender líderes oposicionistas. Alguns continuam na prisão, acusados de “assassinatos”, por mortes que ocorreram em situações confusas aparentemente criadas com o intuito de mudar o rumo pacífico da manifestação. Tenho presenciado em países de regimes autoritários, como a Venezuela, o Egito, a Síria e o Irã, o emprego de “ativistas”, em geral homens altos e fortes, munidos às vezes de bastões e walkie-talkies, e movimentando-se em motocicletas, distribuindo pancadaria em manifestações contra o governo, de modo a tumultuá-las e a justificar a intervenção da polícia. Essas táticas visam também a afastar os cidadãos comuns das próximas manifestações.

No caso da Venezuela, esses métodos têm o seu efeito potencializado pelo ambiente de polarização, de ódios mútuos e impossibilidade de diálogo entre governo e oposição. Esse ambiente resultou no golpe contra Chávez, em 2002, que eu cobri. O presidente, sequestrado por militares, ficou desaparecido por 48 horas, e o presidente do grêmio dos empresários, Pedro Carmona, foi nomeado presidente do país por parte do Congresso, sem respaldo na Constituição.

Dominada há 16 anos por uma ideologia estatizante, hostil à iniciativa privada, e pelo emprego da receita do petróleo no financiamento da máquina dos movimentos sociais, do partido do governo e de países aliados, como Cuba, Nicarágua, Bolívia, Equador e Argentina, a Venezuela sofreu uma desorganização econômica, administrativa e institucional. O país, que ultrapassou recentemente a Arábia Saudita e tem as maiores reservas de petróleo do mundo, desperdiçou a receita obtida com o barril de petróleo a mais de US$ 100, não investiu nos setores produtivos, e hoje, com o petróleo a pouco mais de US$ 40, sofre com escassez de produtos básicos.

Em 1964, o Brasil também vivia uma desorganização econômica e institucional. Para se contrapor à oposição, e com receio de uma intervenção militar, o governo lançou mão do apoio de sindicalistas, camponeses e das associações de cabos e sargentos e de marinheiros. Também naquele momento houve manifestações e contra-manifestações. Foi a quebra na hierarquia militar, por meio da mobilização dos suboficiais do Exército e da Marinha, e a presença do presidente João Goulart em seus atos, que incentivou a corrente legalista dos oficiais a abandonar suas restrições a uma intervenção militar.

Existem pelo menos duas diferenças importantes entre o Brasil de hoje e o de 1964. A primeira é a guerra fria. As parcelas da população civil que apoiaram o golpe e os militares temiam a instauração de um regime pró-soviético no Brasil. Esse temor, baseado no exemplo de Cuba, foi decisivo no apoio ao golpe. Outro aspecto importante era o grau de politização das Forças Armadas, tanto pela ideologia comunista, no caso do movimento tenentista, por exemplo, quanto pelos envolvimentos em conspirações ao longo do século 20.

A guerra fria e a União Soviética não existem mais. O modelo comunista ainda influencia algumas pessoas, mas nenhum país auto-intitulado socialista ou comunista – Venezuela, Cuba, China ou Coreia do Norte -financia de forma significativa movimentos políticos ou guerrilheiros em outros países.

A segunda diferença é que as Forças Armadas brasileiras seguem hoje uma doutrina profissional, na qual não cabe envolvimento na política. Entre 1998 e 1999, entrevistei cerca de 30 oficiais das três Armas a respeito desse tema, e constatei, já naquela época, a existência de uma nova geração de militares que avalia que o golpe de 64 foi ruim para o país e para as Forças Armadas, e espera que algo assim jamais se repita. Desde então, essa noção parece ter se consolidado.

Chávez era tenente-coronel do Exército, e já tinha protagonizado uma conspiração militar em 1992, durante a qual apareceu na televisão para apresentar as reivindicações do movimento, como parte do acordo para se render. Foi assim que obteve notoriedade. Ele participou durante anos de uma célula revolucionária do Exército. Entrevistei alguns de seus camaradas desse período.

Em seu governo, Chávez expurgou os oficiais que tinham outras vinculações políticas ou que se negavam a ter alguma, e impôs a doutrina bolivariana às Forças Armadas. Nas cerimônias do governo, comandantes militares, fardados, sentam-se nas fileiras da frente, e manifestam sua aprovação ao discurso do presidente (antes Chávez, agora Maduro), acenando e rindo para suas piadas, assentindo quando fala da lealdade das Forças Armadas Bolivarianas – assim rebatizadas. Essa politização introduz um complicador importante em uma eventual alternância de poder na Venezuela, seja pacífica ou convulsiva: qual será a reação dos militares?

Em certo sentido, é como se a Venezuela estivesse 50 anos atrasada em relação ao Brasil, vivendo no ambiente em que se viveu aqui em 1964.

No Brasil, em parcelas da população civil, há uma noção difusa de que a democracia levou à corrupção e à ineficiência, e um governo militar seria melhor. Mas as travas das instituições e a cultura democrática em outras parcelas da população parecem mais fortes do que essas tendências.

Com a Venezuela, o Brasil tem em comum um gap muito grande entre ricos e pobres, e uma elite econômica, política, cultural e racial acomodada aos seus privilégios e a uma relação quase escravocrata com os pobres tanto na zona rural quanto urbana. Essa elite se beneficia com a pobreza, na forma de mão de obra barata – caseiros, vaqueiros e lavradores em suas fazendas e empregadas domésticas, guardas e motoristas em suas casas. Essa cultura gerou séculos de ressentimentos sociais, que foram utilizados politicamente por Chávez, Lula e seus sucessores.

Criou-se um clima de polarização com base em uma narrativa segundo a qual quem é contra Chávez, Lula e seus sucessores é contra os pobres. E quem critica algum aspecto de sua política econômica é egoísta, insensível socialmente – mesmo que o argumento seja que aquela política prejudica mais os pobres do que os ricos. A polarização e a intolerância intelectual impossibilitam uma argumentação racional, porque não há diálogo. Há posições, apenas. Ou se está de um lado, ou do outro.

Em outros aspectos, no entanto, o Brasil é diferente da Venezuela. Tem um setor produtivo bem mais abrangente, e, apesar de suas muitas ineficiências, a economia não depende de um só produto, controlado pelo Estado, como é o caso do petróleo na Venezuela. A estratificação social, os valores e a cultura no Brasil são mais diversos que na Venezuela. Há parcelas da população com visões mais híbridas, menos polarizadas, e um espaço maior para a tolerância. A colonização espanhola aparentemente introduziu nos países hispânicos da América do Sul uma rigidez nos valores que não se observa na cultura portuguesa, e na sua interação com as culturas indígenas e africanas no Brasil.

Diante de tudo isso, a polarização e o uso dos movimentos sociais pelo Estado, assim como as manifestações em grande escala em favor do impeachment e em escala bem menor em favor de uma intervenção militar, não resultarão em desfechos como o golpe de 1964 no Brasil e o de 2002 na Venezuela, seguidos dos regimes autoritários de ambos os países. Mas continuarão a deteriorar o ambiente, dificultando a discussão, o consenso e o encaminhamento de soluções e de reformas para o Brasil sair da crise e de seu atraso estrutural.

 

Leia outros Cenários

Deixe o seu comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

*