O que o Brasil tem a ver com a crise argentina

As respostas se encontram nas esferas comercial, financeira e política

 

Condicionados a torcer contra a Argentina e a comemorar suas derrotas, muitos brasileiros se espantaram nos últimos dias ao constatar que os destinos dos dois países parecem sinistramente entrelaçados. O acirramento da crise revelou uma quase equação matemática entre o risco país – obsessão nacional na Argentina que saltou da barreira psicológica de 1.000 para impensáveis 1.600 pontos – e a cotação do dólar no Brasil, que se descolou definitivamente do patamar de R$ 2,00, para flutuar acima de R$ 2,50.

À medida que a Argentina verga sobre o peso de sua âncora cambial e ninguém pode garantir com suficiente firmeza que não arrastará o Brasil, o assombro e a irritação dos brasileiros podem ser sintetizados numa pergunta: o que nós temos a ver com isso? A resposta tem três níveis: o comercial, o financeiro e o político.

Mesmo com déficit, comércio bilateral interessa ao País

Desde o ano seguinte à introdução do real, o Brasil amarga déficits comerciais com seu vizinho. Em 1995, foi de US$ 1,550 bilhão; em 1998, de 1,285 bilhão. A desvalorização da moeda brasileira reduziu, mas não eliminou o superávit argentino: US$ 448 milhões em 1999 e US$ 610 milhões em 2000. A recessão argentina, que está no terceiro ano, tem contribuído para que o vizinho compre menos do que vende para o Brasil.

Entretanto, a Argentina é destino de quase 9% das exportações brasileiras: uma redução nas suas importações de US$ 6,232 bilhões só serviria para castigar a combalida balança comercial do Brasil.

De acordo com Wilson Almeida, que acaba de defender uma tese de doutorado sobre o assunto na Universidade de Brasília (UnB), o Mercosul não alterou o ritmo do incremento de comércio entre o Brasil e a Argentina. A reta inclinada no gráfico desse comércio nos últimos 30 anos “era previsível econometricamente”, garante o especialista.

Já Michel Alaby, presidente da Associação de Empresas Brasileiras para a Integração do Mercosul (Adebim), não tem dúvidas de que o bloco impulsionou as exportações brasileiras. Em 1990, o último ano antes da criação do Mercosul, as vendas do Brasil para a Argentina, Uruguai e Paraguai, que hoje compõem o bloco, representavam 4% das exportações globais do País. Em 2000, essa fatia saltou para 14%.

“O Mercosul foi uma grande alavanca para os negócios”, concorda Luiz Fernando Furlan, vice-presidente da Associação de Comércio Exterior do Brasil (AEB) e presidente da Sadia. Cerca de 300 empresas brasileiras se consolidaram na Argentina e outras tantas argentinas se implantaram no Brasil.

O comércio com o Mercosul interessa, mas não há uma dependência, assegura Mario Mugnaine, diretor-executivo da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp). O bloco absorve 14% do comércio exterior brasileiro, enquanto a União Européia representa 30% e a América do Norte, 25%. “O Mercosul não é nossa prioridade”, relativiza o diretor da Fiesp, especialista nas relações com o bloco. “Até porque não pode consumir muito.”

Ao contrário dos céticos, que apontam no Mercosul apenas um desvio de comércio para o bloco, em detrimento das transações que seus integrantes fariam com outros países, Furlan defende a tese de que o Mercosul não produziu perda de dinamismo. Ele cita como exemplo o fato de que o México passou a ser o principal destino dos veículos exportados pelo Brasil.

Mas os empresários reconhecem que o comércio no bloco está concentrado em poucos setores e empresas – cerca de 2 mil, estima Michel Alaby. O potencial de complementariedade das duas economias não tem sido explorado a contento, concordam todos. Nos Estados brasileiros e nas Províncias argentinas periféricos, objeto da pesquisa de Almeida, a falta de entrosamento é mais evidente: os brasileiros poderiam vender frutas tropicais e os argentinos, frutas temperadas, mas nem um nem outro perceberam isso, observa o especialista.

Além disso, o Mercosul não foi capaz de criar produtos com a marca do bloco, como ocorre com a União Européia. O bloco desenvolveu bases industriais comuns nos setores automobilístico e petroquímico. Mas, segundo Jorge Schvarzer, do Instituto de Investigações Econômicas da Universidade de Buenos Aires, poderiam ser encontrados muitos outros “nichos de complementariedade”. O propósito de conquistar terceiros mercados, contido no projeto do Mercosul, não deveria ter sido esquecido, critica Alaby. “A grande falha é que não conseguimos ver o que seria melhor fazer lá ou aqui”, reconhece Mario Mugnaine, da Fiesp. “Falta uma política industrial comum.”

“Como o desnível entre as duas principais economias é muito grande, com o Brasil tendo um parque industrial e a Argentina, agro-industrial, proponho que os dois se sentem e discutam o que cada um espera do Mercosul”, acrescenta o presidente da Adebim, que representa 300 empresas.

Pode parecer um estranho momento para falar de Mercosul, com a Argentina sucumbindo. Mas na raiz da crise argentina estão os problemas macroeconômicos que também têm debilitado o Mercosul. “Não dá para ficarem eles com câmbio fixo e nós, flexível”, analisa Alaby.

A medida que originou o último conflito no bloco – a eliminação, por parte da Argentina, de preferência tarifária de 8% para os produtos dos outros países membros nos setores de automóveis, telecomunicações e informática – torna-se inócua pela desvalorização de 13,6% do real, com o dólar indo de R$ 2,20 para R$ 2,50.

Aqui, há um círculo vicioso: o aprofundamento da crise argentina deprime o real, o que por sua vez dificulta as exportações da Argentina para o Brasil e a leva a imaginar novas peripécias na forma da eliminação de preferências tarifárias que são a razão de ser do Mercosul. “Se não se resolver isso, não vejo grande futuro para o Mercosul”, adverte o economista Roberto Macedo, que participou das negociações para a criação do bloco.

A estabilidade da moeda foi um pressuposto do Mercosul, a partir do Protocolo de Ouro Preto, de dezembro de 1994, quando ele se aprofundou e ganhou a atual feição. O bloco atraiu grandes corporações, que se instalaram dos dois lados da fronteira entre Brasil e Argentina, com fábricas especializadas e complementares.

Esse alicerce começou a ruir em 1999, com a desvalorização do real. “Um lado ficou 40% mais caro que o outro”, explica Gilberto Dupas, coordenador-geral do Grupo de Conjuntura Internacional da Universidade de São Paulo (USP). Assim, os especialistas acham que o seu relançamento pressuporia a convergência macroeconômica – a coordenação dos sinais vitais dos países membros.

Fabio Giambiagi, economista do Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), vai além: “Todos os problemas que estão ocorrendo só reforçam a tese da moeda comum.” Antes de tudo isso, no entanto, é preciso ver se o Mercosul sobrevive à quebra anunciada da Argentina. A maioria acha que sim.

A atual é a oitava crise desde a desvalorização do real em 1999: houve a do frango, a têxtil, a do aço, a do papel, a do automóvel, a do açúcar e a dos bens de capitais. “Já sabemos que os dois presidentes vão conversar e resolver, mas dentro de ‘x’ meses virá outra crise”, resigna-se Michel Alaby.

Aqui, o professor Raúl Bernal-Meza, da Universidade Nacional do Centro, em Mendoza, diz que os brasileiros estão provando do próprio veneno: “O Brasil nunca aceitou que o Mercosul tivesse instâncias supranacionais para a resolução de conflitos”, que dispensassem os presidentes de acudir a cada crise.

“Como país mais importante da região, o Brasil não quis permitir que outros países menores influíssem em suas políticas, mas isso é requerido por um processo de integração mais profundo”, opina Bernal-Meza.

Para investidores, somos farinha do mesmo saco

A primeira razão para o chamado contágio do Brasil pela Argentina é geográfica. “Não se pode ter um país muito bem quando seu principal vizinho está muito mal”, formula Fabio Giambiagi.

“Em geral, os fundos de investimentos têm um recorte geográfico, são especializados em regiões”, observa Otaviano Canuto, professor de economia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). “Toda vez que se anunciam perdas na Argentina, os fundos especializados em Mercosul se ressentem.”

Além disso, a crise provoca revisões das expectativas dos investidores. “Quanto mais se acentua o risco, mais os agentes revêem seus cálculos em relação aos países da região”, completa Canuto.

Não é por supor que a capital do Brasil se chama Buenos Aires ou que aqui se fala espanhol que os investidores estrangeiros se tornam mais esquivos com o País por causa da crise na Argentina.

Assim como o vizinho, o Brasil sustenta um déficit estrutural no seu balanço de pagamentos e a crise argentina desnuda a fragilidade dessa condição. Tanto lá como aqui, o déficit é coberto por investimentos estrangeiros diretos (IEDs). “Toda vez que a economia mundial muda o tônus, reduz a disponibilidade de IEDs”, ensina Gilberto Dupas, referindo-se à desaceleração da economia global.

Um eventual default – suspensão do pagamento da dívida – por parte da Argentina teria as seguintes conseqüências para o Brasil, resume Fabio Giambiagi: aumento dos juros, do dólar e da inflação e menos crescimento. Passados alguns “meses indigestos”, o Brasil poderia se diferenciar. Como em 1999, lembra o economista, quando os juros ficaram extraordinariamente altos por um tempo, mas depois puderam recuar.

A crise tem um preço que seguirá sendo pago até o seu desenlace, na forma da alta do dólar, dos juros e assim por diante. “O ideal seria que se desatasse logo o nó da Argentina”, diz Canuto. “Como não dá para esperar o milagre da retomada do crescimento, deve haver uma revisão do regime cambial e é melhor que seja já, porque, quanto mais dura o impasse, mais deletério”, continua Canuto. “Já temos um problema sério de credibilidade por causa do buraco na nossa conta corrente, que tenderia a se agravar.”

Haveria uma perda, mas não uma catástrofe

O Mercosul conferiu ao Brasil o papel de líder em negociação com outros blocos. “Ele colocou o Brasil no mapa dos blocos econômicos”, avalia Luiz Fernando Furlan, da AEB e da Sadia. “Propor-cionou a possibilidade de negociar com a União Européia e outros blocos, mas também trouxe para o Brasil dores do parto cada vez mais freqüentes.”

Os argentinos já provaram sua disposição de sacrificar o Mercosul para lidar com sua crise. Em que medida a sua asfixia – seja na forma de paralisação ou de retrocesso, como no caso da perfuração da Tarifa Externa Comum – representaria perda política para o Brasil no cenário internacional?

“Hoje, não seria nenhuma catástrofe”, acredita José Augusto Guilhon de Albuquerque, coordenador do Núcleo de Pesquisas em Relações Internacionais da USP. “Ao contrário, se o compasso de espera do Mercosul se prolonga, e se o Brasil inicia negociações diretas com os Estados Unidos para aplainar as diferenças, os resultados poderiam compensar eventuais perdas que poderíamos ter com a Argentina.”

Em qualquer caso, provavelmente não há aí uma escolha para o Brasil e o poder percebido do País já se esgarçou pelas crises no interior do bloco. “Quando se percebe que há fissuras, perde-se poder de barganha”, atesta Jorge Grandi, diretor do Centro de Formação para a Integração Regional, entidade criada pelo Grupo do Rio e pela União Européia, com sede em Montevidéu.

Aníbal Jozami, diretor da Fundação Foro del Sur, de Buenos Aires, acredita que “o destino estratégico da Argentina passa pelo Brasil”, mas o Mercosul é um objetivo de médio prazo, enquanto os problemas econômicos são urgentes.

O ministro da Economia, Domingo Cavallo, sempre preferiu a aproximação com os Estados Unidos. No início da década de 90, quando Cavallo também era ministro, o presidente Carlos Menem fez menção nessa direção, mas, diante do desinteresse americano, abraçou o Mercosul. As relações comerciais com o Brasil foram embaladas pelos anos do real sobrevalorizado, entre 1995 e 1998. A partir daí, a redução do superávit com o Brasil, que ajudava a Argentina a cobrir o déficit com os países desenvolvidos, fez esmorecer esse ânimo.

“Não podemos nos associar com os Estados Unidos porque não interessamos como sócios”, descarta Jorge Schvarzer, da Universidade de Buenos Aires. “É a visão de alguém periférico que se crê importante.”

“O Mercosul não é estratégico neste momento para a Argentina, só as relações com o Brasil”, constata Gilberto Dupas. “É por isso que Cavallo se contém.”

 

A posição do Brasil também não deixa de ser ambígua. “Você não pode abraçar um afogado, porque ele te leva para o fundo”, ilustra o economista Marcelo de Paiva Abreu, da Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Rio. “Mas também não pode ser acusado de tê-lo afogado.” Nem de cruzar os braços enquanto ele afunda. Sobretudo se houver uma corda que o amarra a ele. 

 

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