Politização da Embrapa assusta cientistas

Petistas e sindicalistas ocupam cargos técnicos; empresa se engaja no Fome Zero e coloca oficialmente agronegócio em segundo plano

 


BRASÍLIA – Logo que assumiu a presidência da Embrapa, no início do ano passado, Clayton Campanhola chamou os chefes das unidades centrais da empresa para contarem o que faziam. Numa dessas sessões – luzes apagadas, retroprojetor ligado -, os especialistas da Secretaria de Propriedade Intelectual discorriam sobre suas conquistas: mais de 140 patentes registradas nos Estados Unidos e na Europa, 250 variedades protegidas no Brasil e nos países vizinhos, 2 mil contratos firmados com produtores de sementes, e assim por diante.

Tudo recheado de milhões de dólares: as empresas que queiram comercializar sementes desenvolvidas pela Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária) têm de pagar, em média, 3% de royalties sobre as vendas. No caso da soja desenvolvida com gene da Monsanto, se o empreendimento não tivesse sido declarado ilegal pela Justiça, deflagrando a pirataria desenfreada no País, a comercialização das sementes teria rendido à Embrapa de 6% a 10% em royalties.

Quando olharam para o presidente, contam os técnicos, Campanhola havia adormecido.

Desde então, o presidente não deu mostras de recobrar o entusiasmo pela biotecnologia e pelo agronegócio. Em memorando distribuído no dia 10 de fevereiro de 2003, Campanhola “resolve definir, como primeira vertente prioritária da Embrapa, atividades de pesquisa e desenvolvimento direcionadas aos agricultores familiares, assentados da reforma agrária e pequenos empreendedores rurais”.

O agronegócio aparece, literalmente, em segundo plano, no item 2 do comunicado: “Fortalecer, como segunda vertente prioritária, atividades de pesquisa e desenvolvimento voltadas para as cadeias do agronegócio, desenvolvendo sistemas competitivos que amparem os segmentos exportadores e do mercado interno, agreguem valor aos produtos primários, gerem emprego e desenvolvam tecnologias ambiental e socialmente éticas.”

Os sinais foram se avolumando. Indicado para o cargo pelo ex-ministro da Segurança Alimentar José Graziano, que orientou seu pós-doutorado na Unicamp, Campanhola manifestou o intuito de engajar a Embrapa no Programa Fome Zero. E abriu espaço para os movimentos sociais, incluindo o MST, nas discussões sobre as políticas de pesquisa e nas bancas de seleção dos chefes de unidade.

O Sindicato Nacional dos Trabalhadores de Pesquisa e Desenvolvimento Agropecuário (Sinpaf) também ganhou espaço. A maioria dos assessores do presidente é oriunda do sindicato e pertence ao PT.

Seguindo o padrão de administração do PT, que reserva ao partido os cargos de confiança, a equipe não foi formada por Campanhola. Dos três diretores-executivos, dois foram indicações políticas: Herbert Lima, indicado pela ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, e ex-presidente do Sinpaf, representa os interesses de ambos – freqüentemente convergentes. Gustavo Chianca, ex-presidente da Empresa de Pesquisa Agropecuária do Estado do Rio de Janeiro, foi indicado pela ex-ministra da Assistência Social Benedita da Silva.

Ao longo do último ano, Campanhola foi a campo e trocou 19 dos 37 chefes de centros de pesquisa da Embrapa. Outros 9 estão em processo de escolha. Boa parte deles teve o mandato interrompido pelo presidente.

Desde 1995, a Embrapa tem um sistema de seleção pública dos chefes de unidade, cujos currículos e projetos de gestão são examinados por uma banca composta de especialistas de dentro e de fora da empresa. Pesquisadores de fora também podem concorrer.

O presidente da Embrapa tem de escolher um nome na lista de aprovados, que tem pontuação mínima. O mandato é de dois anos, renováveis por mais dois, se as metas da primeira metade tiverem sido cumpridas. E havia a possibilidade de um segundo mandato. O presidente demitiu os chefes em segundo mandato, sob o argumento de que lhes faltaria motivação. Campanhola, que exerceu dois mandatos de chefe na Embrapa Meio Ambiente, em Jaguariúna (SP), diz que se inspirou no próprio exemplo: “Aos sete anos, pedi para sair, porque considerei que minhas contribuições estavam esgotadas”.

Dos 19 novos chefes de unidades, pelo menos 10 pertencem ao PT e ao Sinpaf. Desconfiados de que os processos de seleção serviriam apenas para legitimar indicações políticas, vários centros de pesquisa apresentaram apenas um candidato a chefe.

O sindicato, dominado por petistas, assumiu o papel de fiscal da execução das políticas do governo na Embrapa. Signatário do Manifesto por Um Brasil Livre de Transgênicos, o sindicato faz marcação cerrada sobre os pesquisadores mais proeminentes e sobre a direção da empresa.

Se algum cientista é flagrado defendendo a pesquisa com transgênicos, é execrado nos comunicados do Sinpaf, que os acusa de ignorar “a postura do novo governo” e exige providências para calar o transgressor. Diante disso, muitos cientistas interpretam que haja uma “lei de silêncio” na Embrapa acerca do tema.

Campanhola tem titubeado em relação aos transgênicos, o grande nicho da pesquisa de ponta na Embrapa. Durante encontro com líderes de “movimentos sociais”, ele enfatizou as incertezas que cercam as pesquisas dos transgênicos, que qualificou de um “abacaxi” herdado por sua gestão. A conversa foi filmada e vazou.

Quando a Lei de Biossegurança entrou em votação na Câmara, no início do mês, o ministro da Agricultura, Roberto Rodrigues, o mais importante defensor dos transgênicos no governo, pareceu virtualmente desamparado, no embate com Marina Silva. Os assessores do Ministério do Meio Ambiente, em parceria com os ativistas, fizeram lobby ostensivo, enquanto um par de pesquisadores da Embrapa visitava alguns deputados, por iniciativa própria, e quase clandestinamente.

O resultado foi a aprovação de um texto que confere ao Ibama o poder de obstruir a comercialização de produtos, não só vegetais, mas também animais e farmacológicos, além de alterar a composição da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio), dificultando a aprovação de decisões.

Tudo isso tem preocupado pesquisadores de ponta na Embrapa, que preferem não ter o nome publicado, para não sofrerem represálias. “Há muita ansiedade e perplexidade”, diz um cientista da instituição. A sensação, entre os pesquisadores, é a de que a empresa caiu na armadilha da política e da ideologia, mortal para quem trabalha com inovação tecnológica aplicada à produção.

Coisas caras aos cientistas, como a meritocracia na empresa, a relativa proteção frente às pressões políticas, a liberdade para trabalhar, a motivação, enfim, um conjunto de características que, para eles, explica o êxito e o prestígio da Embrapa, parecem correr sério risco.

Os cientistas temem que a Embrapa perca o foco e se torne um órgão burocrático e irrelevante, como o Ibama. Ou que o governo queira usar a Embrapa para suprir as deficiências de extensão rural do País, ocupando uma rede de 2.221 pesquisadores, 53% deles com doutorado, na solução de problemas prosaicos de pequenos agricultores e assentados, que precisam de um agrônomo ou um veterinário, não de um cientista.

A equipe da Secretaria de Propriedade Intelectual, com sua experiência na negociação de contratos e na obtenção de patentes, praticamente se desfez. Isso, num momento em que a Embrapa parecia criar uma oportunidade histórica.

“O que mais me entristece nisso tudo é que pela primeira vez o Brasil tinha chance de ser liderança em tecnologia”, diz uma pesquisadora. “Podemos exportar tecnologia na área agrícola para todos os países tropicais do mundo.”


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