Procura-se uma função para o vice

José Alencar, que não gosta de viajar, deve estrear em Moscou, na trilha de Marco Maciel

 

 

BRASÍLIA – Em 1950, o comerciante Geraldo Gomes da Silva emprestou 15 mil cruzeiros para seu irmão mais novo abrir o próprio negócio – uma lojinha de tecidos em Caratinga, Minas Gerais. Todos os meses, o rapaz depositava 225 cruzeiros na conta de Geraldo, no Banco Hipotecário. Intrigado, o gerente o chamou e perguntou a razão desses depósitos. O jovem explicou que era o pagamento dos juros de 1,5% ao mês que o irmão lhe cobrava pelo empréstimo.

“Meu filho, você não conhece a Lei da Usura, do Getúlio Vargas, que proíbe juros de mais de 12% ao ano?”, perguntou o gerente. “Se quiser, eu lhe empresto 15 contos, você paga seu irmão e eu lhe cobro 1% ao mês.” O rapaz, então com 18 anos, foi interpelar o irmão, que lhe explicou que aquilo não eram juros, mas “aluguel” do dinheiro. “Essa encrenca minha com juros não nasceu ontem”, sorri, aos 72 anos, o vice-presidente José Alencar, o irmão mais novo de Geraldo.

Alencar lembra que em 1976, quando o ministro da Fazenda, Mário Henrique Simonsen, instituiu a correção monetária para empréstimos bancários, a dívida de sua empresa ultrapassava dois terços do patrimônio líquido. Alencar proibiu novos investimentos até quitar as dívidas. “Se não fosse essa medida, teria sido mais uma empresa quebrada, entre tantas outras que fecharam as portas.”

Alencar é o patriota clássico, da linhagem de Policarpo Quaresma: “O Brasil é um país exuberante, competitivo em todos os setores, com bacias sedimentares que podem conter grandes reservas de petróleo, com um potencial de turismo que ainda nem começamos a explorar”, enumerou o vice-presidente ao Estado. Rejeita a pergunta sobre se os juros não são o preço que pagamos pelas guinadas heterodoxas e ameaças de calote do passado, sacando o ranking dos juros no mundo, naturalmente encabeçado pelo Brasil: “A Rússia (juro real negativo de 0,3%) não declarou moratória também? O Brasil tem menos prestígio que esses países?”, pergunta, mostrando os juros reais das Filipinas (4,9%), Indonésia (3,3%), Colômbia (1,5%), Tailândia (-0,4%), etc.

A cruzada do vice-presidente contra a política monetária é vista com divertido desdém por iniciados no assunto, e não abala a placidez imperturbável do Comitê de Política Monetária. Serve para compor o folclore de um Dom Quixote ocioso, que, quando não está amaldiçoando os juros ou dando uma força aos amigos nos meandros da burocracia federal, lastima-se da própria sorte por lhe pousarem nas mãos batatas quentes como a medida provisória dos transgênicos.

Instalado no gabinete do presidente durante as constantes viagens de Lula, Alencar tem adquirido a imagem de rainha da Inglaterra, enquanto o ministro-chefe da Casa Civil, José Dirceu, cumpre sua frenética agenda de reuniões com ministros e políticos.

A impressão do ócio de Alencar é reforçada no contraste com o ex-vice-presidente Marco Maciel. Embora mais discreto que seu sucessor, Maciel, político desde os tempos de movimento estudantil, esteve envolvido em todas as negociações importantes do governo anterior com o Congresso, como um dos principais líderes do PFL, que tinha mais deputados e votava mais coeso do que o próprio PSDB, do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso.

No governo anterior, o PFL, com uma média de 100 cadeiras na Câmara, tinha mais do dobro de deputados do PL de Alencar hoje – mesmo depois de haver duplicado o seu número, dos 26 eleitos para os 43 atuais, graças à maciça campanha de adesões aos partidos aliados ao PT, que se mantém “puro”, com 91.

Alencar, que trocou o PMDB pelo PL na última hora, para poder entrar na chapa de Lula, não tem sobre seu partido a ascendência de Maciel, que ajudou a fundar o PFL e sempre teve nele papel de destaque. Agora, ironicamente, a aliança com o PMDB, de 77 deputados, reduz consideravelmente a importância relativa do PL e de outros aliados da “primeira hora”.

O próprio Fernando Henrique chegou a se deslocar do Palácio da Alvorada, a sua residência oficial, para o Jaburu, a do vice, em reuniões importantes com líderes políticos. Pelo seu gabinete no Anexo 2 do Palácio do Planalto, que Maciel não trocava pelo gabinete presidencial quando Fernando Henrique viajava, passaram incontáveis autoridades estrangeiras. Em oito anos, ele fez 47 viagens oficiais ao Exterior.

Aqui, há uma semelhança desconhecida do público. Nesses 13 meses, Alencar recebeu 169 autoridades estrangeiras. A maioria por iniciativa delas, não do Itamaraty, e não necessariamente quando Lula estava viajando. O vice também tem feito o circuito das embaixadas. Num almoço, discursou aos dez embaixadores da Associação das Nações do Sudeste Asiático (Asean); noutro, falou aos representantes de países da União Européia.

Muitos integrantes de governos e grandes empresários estrangeiros se interessam pela figura de Alencar, por sua condição de empresário bem-sucedido que apostou na candidatura de um ex-metalúrgico derrotado três vezes antes. Seu perfil de self-made man, que converteu a lojinha de tecidos em Caratinga num conglomerado que fatura R$ 1,5 bilhão por ano, fala ao imaginário dos americanos.

O representante de Comércio dos EUA, Robert Zoellick, foi um dos que pediram para falar com Alencar. “Mr. Zoellick, me explique o que o sr. entende por Alca, porque, se não for livre comércio para todas as Américas, tem que mudar o nome”, começou o vice. Terminaram às gargalhadas.

A simplicidade de Alencar é cativante. Por sugestão do Itamaraty, Lula já decidiu que vai lançar mão do vice para tapar “lacunas” em sua atribulada agenda internacional. Alencar deve estrear em Moscou, em abril ou maio, no âmbito da Comissão de Alto Nível, um relacionamento preferencial que a Rússia só mantém com outros quatro países além do Brasil: EUA, França, China e Ucrânia – e que Maciel lançou com duas viagens a Moscou, em 2000 e 2001.

É possível que Alencar seja engajado também nas relações com a China – outra prioridade da política externa de Lula, ao lado da Rússia. O vice, que não gosta de viajar, reage a essas novidades com prudência mineira, deixando que a iniciativa parta do Itamaraty e de Lula. 


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