Um “quase” direito retroativo

Restrições nos casos mais dramáticos é quase insustentável

Regina Parizi reconhece que a existência da agência e da regulação “cria um quase direito retroativo”. Segundo a presidente do CRM, “fica quase insustentável para as empresas manter restrições nos casos mais dramáticos: a sociedade acaba exigindo”.

A exclusão dos planos coletivos – reajustados por livre negociação –, no entanto, é criticada pelas entidades de defesa do consumidor. A advogada Andrea Salazar observa que a lei não os exclui explicitamente. Em algumas passagens, a lei menciona especificamente os planos individuais e familiares, mas, na interpretação do Idec, a intenção é deixar claro que a lei se aplica também a esses planos, porque são os mais vulneráveis na relação com as empresas.

“Eles não ficam de fora”, insiste Januario Montone. “A ação da agência em relação a eles é mais de monitoramento.” O presidente da ANS diz que é uma questão de “foco” da agência, que “está em construção” e tem capacidade limitada de ação. “Um plano coletivo empresarial é uma empresa contratando outra empresa”, define. Quando os empregados pagam uma parte, o sindicato participa da negociação. “São dois agentes com capacidade de negociação.”, diz Montone. “Não tenho por que interferir.”

“Se a empresa acha o reajuste abusivo, quebra o contrato e contrata outro”, estima o presidente da ANS. Acima de 50 usuários, não pode haver carência. O consumidor individual tem mais dificuldade de fazer isso, por causa da carência. “Uma operadora, quando ganha o contrato de uma empresa, vai atrás do credenciamento dos médicos do plano anterior. É outra relação.”

Mas a agência começa a distinguir dois grupos com experiências distintas. Os planos coletivos representam 70% de todo o mercado: 40% são empresariais e 30%, “por adesão”, como são chamados os convênios promovidos por sindicatos e outras associações. Nos planos por adesão, a agência “tem tido muita notícia de reajustes que os usuários consideraram abusivos e em que não deram palpite”. Mesmo mantendo a livre negociação, a ANS passou a exigir, no ano passado, que, nos contratos por adesão, o índice de reajuste e a justificativa fossem apresentados à agência 30 dias antes da aplicação.

“A exposição ao abuso é maior no plano individual e familiar, intermediária no coletivo por adesão e menor no empresarial”, classifica Montone. “Estamos distribuindo a ação da agência com essa ótica.”

Ao lado do alcance restrito da legislação, Regina Parizi, do CRM, observa que o impacto da regulação sobre a prestação dos serviços ainda é pequeno porque “as empresas tendem a ser lentas na implementação das normas”. A razão disso, explica Arlindo Almeida, são as mudanças constantes na regulação, que dificultam o seu cumprimento pelas empresas.

A lei já nasceu em mutação. Depois de mais de sete anos de debates no Congresso, ela foi aprovada no Senado no dia 3 de junho de 1998. No dia seguinte, o governo editou medida provisória com alterações profundas no texto para contemplar as mudanças que os senadores desejavam fazer. Foi um pacto. Se o Senado alterasse o projeto, ele teria de voltar para a Câmara, causando mais demora. Desde então, mensalmente, o governo reedita a MP, mas, freqüentemente, introduz alterações na medida original.

“Isso é discurso”, refuta o presidente da ANS. “Temos 66 resoluções, mas muitas são decisões administrativas.” Cerca de 20 são de fato regulatórias, garante Montone. “Só fizemos duas mudanças expressivas: a que definiu o que é um plano de saúde e acabou com a discussão sobre se seguro é ou não plano; e a que mudou o modelo regulatório e acabou com a bipolaridade da regulação nos ministérios da Fazenda (que fiscalizava os seguros) e da Saúde (os convênios), trouxe tudo para o Ministério da Saúde e introduziu a agência.”

“É necessário converter essa MP em lei para ter uma previsibilidade conceitual”, concede, no entanto. “Temos um vácuo de regulação porque a legislação montou um arcabouço genérico e delegou ao órgão regulador executar.”

Nesse ponto, a presidente do CRM se solidariza com a agência. “A medicina tem muitas variáveis, incorpora muitos conhecimentos numa velocidade muito grande”, diz Regina Parizi. Por isso, ela acha que a regulação não deveria descer a tantas minúcias. “Deveria deixar clientes, operadoras e médicos pactuarem”, propõe.

Montone discorda. “Uma coisa é a categoria médica, a outra é você na hora em que está sendo atendido”, contrapõe. “Como ação reguladora, essa zona cinzenta não era a melhor política, porque, em geral, ela facilita para quem tem mais força de negociação naquele momento, e não tenho como garantir que o consumidor vai ter a maior força.”

Todas as operadoras são obrigadas a oferecer aos usuários a possibilidade de migrar para um contrato adaptado à legislação aprovada em 1998. De acordo com o Idec, as poucas que ofereceram o fizeram de maneira pouco atraente: mandaram o boleto com o novo preço e uma carta dizendo apenas que, se o usuário quisesse contrato sob as novas regras, teria de pagar aquele valor, sem explicar os benefícios.

As empresas não escondem sua falta de apetite para realizar a chamada “migração”. “Deixando para o usuário escolher, quem vai migrar é o doente, como, por exemplo, o renal crônico que não tinha cobertura para hemodiálise”, adverte o presidente da Abramge. Ou seja, mais sobrecarga no custo.

Regina Parizi acha que, se o plano de referência – a soma do ambulatorial e do hospitalar integrais – tivesse sido imposto como o único possível, o preço poderia até ter subido num primeiro momento, mas tenderia a baixar, porque se instauraria a concorrência efetiva entre as operadoras, intensificada pelo fato de todas estarem vendendo o mesmo produto.

A posição do governo foi a de que as operadoras tinham de ser capazes de oferecer o plano de referência, mas também outras opções (os planos ambulatorial e hospitalar integrais) e o cidadão, de escolher “democraticamente”. O cidadão não escolhe, diz a médica: “Define o que seu poder aquisitivo permite.”

“Como alguém vai querer só plano ambulatorial?”, pergunta a presidente do CRM. “Sinto-me constrangida de estar regulando plano ambulatorial.” Hoje, enfatiza, é impossível bancar a própria internação: “Médico não faz para si só plano ambulatorial.” De fato. Mas, para Januario Montone, esse é um argumento em favor da diversidade de opções: muitos médicos preferem plano só hospitalar, já que os colegas não cobram consulta…

O resultado da variedade, argumenta Regina, é que as operadoras não brigam entre si para ver quem oferece o plano de referência mais barato, mas para ver quem tem a menor carência ou cobre mais cirurgias plásticas. “Permitir a opção entre o plano novo e a manutenção do antigo significa que pode continuar a realidade caótica.” Muitas escolas dizem que área de saúde é impossível de regular, observa Regina. “Se não se colocam alguns pontos básicos para comparatividade e controle, fica ao sabor do mercado.”

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